“Qu’est-ce que le cinema?” O que é o cinema? Esta interrogação, recorrente na obra de Jean-Luc Godard, pode até ser lida como forma de provocação. De ver mais além do que nos é dado. Embora seja igualmente uma referência à obra cujo título formula precisamente a mesma questão, de André Bazin, crítico de cinema e um dos fundadores da revista “Cahiers du Cinema”, cuja influência viria a englobar os diversos cineastas da Nouvelle Vague, como François Truffaut, Éric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette, para além de Godard, naturalmente.
“O cinema é uma arte ilusória”, responderá o realizador franco-suíço através da personagem de Jean-Paul Belmondo em “Charlotte et son Jules”, precisamente a curta-metragem que abrirá a retrospetiva de mais de uma centena de filmes de JLG. Seja como for, esta é uma procura sistemática que atravessa a obra de um cineasta que, mesmo do alto dos seus 86 anos, não perde a lucidez e não deixa de se/nos questionar. Será talvez esse o maior legado da sua imensa obra. Desde que, no final dos anos 50 e início da década de 60, declarou obsoletas as regras do cinema convencional, agarrou numa Super 8, saiu para a rua e acrescentou mais verdade num cinema que envelhecia. Pois, com esta nova vaga de um cinema desempoeirado, nada mais foi como dantes.
Apesar da natural expectativa que tal mostra possa provocar, desde já avisamos que será difícil procurar segui-la a par e passo, desde logo pela total impossibilidade de programar uma tão vasta obra de um autor nos dez dias do LEFFEST. As opções serão inevitáveis, já que inúmeras sessões estão inevitavelmente sobrepostas. Para além de que, como bem sabemos, há muito mais para ver no festival dirigido por Paulo Branco. O essencial é não passar ao lado daquele que permitiu abrir as portas e influenciar alguns dos maiores cineastas da atualidade. O que terão em comum Bernardo Bertolucci, Martin Scorsese, Steven Soderbergh ou Quentin Tarantino? Se lhes perguntassem, diriam talvez que foi o facto de terem sido influenciados por obras-primas como “O Acossado”, “O Desprezo”, “Weekend” ou “Bando à Parte”. Não deixa, por isso, de ser paradoxal Godard nunca ter recebido qualquer nomeação para um Óscar (ganhou apenas um honorário em 2011), ou sequer uma Palma de Ouro no Festival de Cannes, seja pela tremenda capacidade inventiva dos seus filmes, seja pelos seus guiões, que ainda hoje desafiam a modernidade.
Imagine-se então, ainda antes da explosão criativa dos anos 60, o topete de um cineasta que desconstruiu géneros, subvertendo-os, como o film noir em “O Acossado”, isto ainda em 1959, com um Belmondo a sonhar com Bogart, mas que não desdenhava acariciar o traseiro de Jean Seberg, citar clássicos da literatura, elogiar a pintura, mimetizar os filmes, cantar, escutar o ruído das palavras e dar-lhes significados novos, como se de uma colagem se tratasse, embora exista muito mais do que isso em “Pedro o Louco”; mas também assumir a nudez de Brigitte Bardot ao sol em “O Desprezo”, mesmo ao lado de uma rodagem de Fritz Lang. Sim, existe no seu cinema uma espécie de pastiche que adquire diversos e inusitados significados e provocações. Veja-se, por exemplo, o arrasador efeito provocado por “Je Vous Salue Marie”, cuja reinterpretação da oração ave-maria foi excomungado pela Santa Sé e com um coro de ira pela igreja universal. Agora, a uma outra luz, o filme poderá ser visto e acompanhado pelo documento “Petites Notes à Propos du Film ‘Je Vous Salue Marie’”.
Talvez o mais deslumbrante na obra de JLG seja a sua imensa paixão pelo cinema. Todo o cinema. Algo que devolve com tremenda intensidade. Até muitos dos seus trailers se assumem como objeto estético de inegável valor. Razão pela qual as suas incríveis “histórias do cinema” são igualmente de não perder. Tal como os seus filmes mais experimentais, como “Filme Socialismo” e “Adeus à Linguagem”, em que o vídeo, tão maltratado por tantos, tal como o 3D, foi entretanto liberalizado por Godard.
A dar alguma luz às diferentes vagas que assumiu a obra de JLG, chamamos a atenção para o simpósio internacional intitulado “Vu par”, em que um grupo de convidados onde se incluem realizadores, críticos, filósofos e artistas de várias proveniências comentarão esta tão rica obra.
Outra das presenças marcantes em Lisboa será a do ator Louis Garrel, convidado a falar sobre este realizador que interpreta no filme “Le Redoutable”, de Michael Hazanavicious, autor de “O Pianista”, vencedor do Óscar de Melhor Filme em 2011. Embora o filme não esteja ainda concluído, pois está previsto apenas para o ano que vem, promete dar que falar, desde logo pela imagem divulgada, que impressiona pela tremenda parecença com Godard.
Jean-Luc Godard nasceu em Paris a 3 de dezembro de 1930, embora tenha vivido na Suíça durante a infância e juventude. Será a partir dos anos 50 que Godard inicia uma vibrante colaboração com os “Cahiers du Cinema” e começa também a realizar algumas curtas–metragens. Será em 1959 que surge com o fulgurante “O Acossado”, acabando por ser tornar uma espécie de porta-estandarte da Nouvelle Vague. Mas é ao seguirmos a sua obra que nos apercebemos de como esse lado crítico se prolonga, numa procura e análise do tal fundamento do cinema. O que é o cinema, então? Talvez a arte da apropriação feita descoberta. Talvez o sobressalto da história, da arte, da conjugação das artes e do segredo das palavras. Talvez algo que possamos descobrir ao longo destes dias no LEFFEST.