Podíamos começar pelos clichês como “a vida dá muitas voltas”, ou pelos ensinamentos de avó que dizem que “só não há remédio para a morte”. Podíamos até recorrer ao slogan que deu mote a este jornal e que defende, com razão, que “num instante tudo muda”.
Tudo isto é verdade universal e conhecimento comum, mas não é por aí que vamos. Em vez de frases feitas, decidimos dar cara e voz a quem mudou de vida quando já não estava satisfeito. E não, também não vamos em canções. Vamos conhecer histórias nas quais o emprego assumiu o papel principal e obrigou a uma reviravolta radical, seja por mudança de área, de país, de profissão ou simplesmente porque sim. Afinal, quando é para mudar, e se for para melhor, todas as razões são válidas.
Fábio Afonso, 25 anos
“Foi aí que decidi: vou ser barbeiro e, olha, aqui estou”
Apanhamos Fábio literalmente entre cortes. “Tenho agora uma vaga, podemos falar.” Hora livre é difícil de encontrar no “Palco do Barbeiro”, um espaço que de seu passou a ser de Valpaços.
Sem grande interesse em prosseguir estudos universitários, apostou num curso profissional de informática, “o único que havia”, conta ao i, rindo-se do desinteresse inerente aos seus, na altura, 18 anos. Com o 12.o nas mãos, passou por um atelier de arquitetura e por uma gráfica, mas nada com força suficiente para o manter na cidade onde nasceu e de onde nunca quis sair. “Sim, eu sou o único maluquinho que ficou por cá”, diz em tom irónico, lembrando que até as bandas nas quais tocava bateria tiveram de acabar por falta de elementos, todos eles desertores de Trás-os-Montes.
Fez um mapa mental da cidade e uma lista daquilo que lhe podia fazer falta. “Pensei em ser tatuador, mas isso exige muita prática e eu precisava de abrir um negócio rápido.” Pensa novamente, dá duas voltas pelas ruas principais e chega a uma conclusão: dos quatro barbeiros com porta aberta, três estavam em idade de reforma. “Foi aí que decidi: vou ser barbeiro e, olha, aqui estou.” Em três meses aprendeu a técnica e, como nenhum dos pré-reformados via nele experiência suficiente para lhe pôr uma tesoura nas mãos, decidiu abrir o seu próprio espaço.
Lidou com a desconfiança de quem não acreditava na perícia de um rapaz de 21 anos, mas a experiência dos mais corajosos foi chamando outros tantos e agora já há quem prefira esperar só para que seja Fábio a assumir o trabalho.
Por ser um negócio fora da caixa para a região, recebeu imensos contactos de quem precisava de ajuda para dar um passo semelhante. “Sei que, atualmente, pelo menos quatro dessas pessoas são barbeiros”, conta, sem esconder o orgulho de ainda surpreender quem não conseguia ver além do rapaz de 18 anos sem ambição.
Ilídia Sá, 34 anos
“Tinha uma vida fixe, mas pensava: é isto que quero fazer para sempre?”
“Tinha uma vida fixe.” É com um ânimo doseado que Ilídia começa por contar o antes. Trabalhava como personal trainer num ginásio em Lisboa, conseguia pagar casa e carro, mas não conseguia fugir aos eternos recibos verdes. “Cada vez que via o que perdia em impostos, pensava na minha vida e perguntava: é isto que quero fazer para sempre?” Mas “tinha uma vida fixe” e assim se deixou andar até receber uma proposta via Facebook para ir trabalhar para o Dubai. “Mexeu comigo, claro, mas custava-me, acima de tudo, deixar cá os meus pais.” Talvez tivesse razão tendo em conta que, no dia em que mencionou a proposta à família, teve de lidar com a mãe a chorar como se ela já estivesse efetivamente do outro lado do mundo.
Mas avançou e dia 1 de abril estava a caminho de um novo trabalho. “E de uma nova vida, descobri depois.” Isto porque, desacreditada no amor, tinha planeado ficar apenas uns anos para ganhar dinheiro e conseguir ter um filho só seu. “Mal sabia eu que um mês depois conhecia o Glauco e no meu aniversário, em agosto, era pedida em casamento.”
Fã do calor que a obriga a usar havaianas o dia todo, da segurança nas ruas, dos preços de supermercado semelhantes aos de Portugal e de um salário que permite ter facilmente um carro de luxo e um telemóvel topo-de-gama, Ilídia não vê o regresso como um plano a curto prazo. “Mas se decidirmos sair daqui, o destino será a Europa”, conta, agora que já conjuga o futuro no plural. Para já, entre as dezenas de treinos personalizados que dá por semana, começa a pensar nos pormenores de um casamento que vai acontecer em julho. “Vai ser no Brasil, uma grande loucura, mas para vivermos depois, talvez Portugal.”
Umbelina Dantas, 58 anos
“Quando me perguntavam sobre o que ia perder, só pensava no que ia ganhar”
Aos 50 anos, ninguém espera grandes mudanças. Mas aos 50 anos também são poucas as pessoas que dedicam as férias de verão a fazer voluntariado em Moçambique. “Dizia sempre: deixa-me chegar aos 55 e peço a reforma para me dedicar a isto a 100%.” Da ameaça passou à ação concreta e, no dia de aniversário, Umbelina entregou os papéis que lhe tiravam 55% do que estava habituada a receber como professora, números que para si eram apenas isso, números. “Quando comuniquei a minha saída ao diretor da escola onde trabalhava, ele perguntou-me se tinha noção do que ia perder, mas eu só conseguia pensar no que ia ganhar.”
Embarcou com o essencial, sabendo que não ia ganhar dinheiro, mas que isso era secundário numa Moçambique a precisar tanto dela. “Ganho outras coisas. Olha, por exemplo, filhos! Aqui todos me tratam por mãe”, conta.
Aproveitou as aulas de animação sociocultural que dava em Portugal para criar uma equipa de pedagogia capaz de ensinar crianças dos três aos seis anos. “E aqui tenho mesmo de ensinar o básico”, garante, ao lembrar que ainda esta semana mostrou à turma o que era um furador. “Tens de ensinar aquilo que achas que não é preciso ensinar.” Em contrapartida, garante que tem sido muito mais aquilo que aprende, principalmente quando é preciso recorrer ao desenrascanço português que nem a distância faz esquecer. “Não há cinema? Vejo filmes no computador. Não há esplanadas? Trago café de Portugal e bebo em casa. Tudo se faz, o que é preciso é vontade.” E a sua passa por viver em Moçambique e limitar as vindas a Portugal a apenas uma viagem anual. “Só de pensar em ter de usar botas e casacos outra vez, até me dá calor”, brinca, dando provas de que fez de África a sua nova casa. “É que fiz mesmo”, garante.
Lee Guimarães, 33 anos
“Se o Sócrates vai sair, vou eu ficar?”
“Nunca quis ser cabeleireira, nem professora, nem bailarina, nada disso.” Para Liliana, mas que todos conhecem por Lee, o futuro estava traçado desde miúda: “Ser jornalista e mais nada.” Estudou em Coimbra e voltou a São João da Madeira para trabalhar no semanário local. Fazia o que gostava mas, ao fim de cinco anos, além de não ser aumentada, teve um corte no ordenado. “É que o jornalismo é muito bonito, é um sonho, mas não paga contas.” E Lee tinha as suas para pagar e um salário de 500 euros não chegava.
A gota de água aconteceu quando, na televisão, viu José Sócrates a abandonar o governo. “Pensei: se ele que criou este caos vai sair, vou eu ficar?” E foi assim que o ex-primeiro-ministro mudou a vida de Lee. Despediu-se sem ter alternativa a não ser a de avisar todos os amigos que estava no mercado e tinha interesse em sair do país.
O networking funcionou e, pouco tempo depois, estava na Córsega a fazer limpezas numa empresa de imobiliário de luxo e a ganhar três vezes mais do que no jornal. Mas um percalço, mais concretamente a mordedura de um cão, obrigou–a a meter baixa e a ter a mão imobilizada. “Comecei a procurar trabalho que não exigisse o uso das mãos e rapidamente percebi que não existe”, conta, entre risos. No meio de tanta pesquisa, havia um resultado comum e que a fez reavivar outra paixão. “Encontrava imenso trabalho na área da cozinha e lembrei-me que, além de escrever, cozinhar era a única coisa que sabia fazer bem.”
De volta a Portugal, apostou na formação com dois cursos na Escola de Hotelaria do Porto, a que se seguiu um estágio num restaurante espanhol com estrela Michelin e, de volta a Portugal, um trabalho como cozinheira num restaurante da Baixa do Porto.
Bem longe do jornalismo, começou a perceber que as dificuldades de algumas profissões tão diferentes acabam por ser comuns. “Os horários e o esforço físico e mental de trabalhar numa cozinha são brutais. Eu sabia que queria ser cozinheira, mas não queria que a minha vida fosse só ser cozinheira.” E para recuperar um pouco da vida pessoal passou para o lado do catering e da formação, onde pôde juntar uma paixão antiga, a de escrever. “As minhas receitas parecem autênticos romances”, refere.
Assumindo o papel de voz de uma geração que apanhou a crise em início de carreira, consegue agora olhar para esses anos de terror como algo positivo. “Serviu de alavanca. O pessoal percebeu que já não tinha nada a perder e atirou-se aos sonhos que tinham como impossíveis de concretizar.” Ser cozinheira não estava nos planos da Lee criança, mas já são outros para uma Lee de 33 anos. “Faço o que gosto, ganho mais em início de carreira do que em sete anos como jornalista e, além disso, posso dizer que fui eu que criei o meu próprio futuro.”
António Cuco, 37 anos
“Só contrato desempregados. Estar desse lado fez-me dar mais valor ao trabalho”
António costuma dizer que o desemprego foi a melhor coisa que lhe aconteceu. “Abençoada a hora em que a Direção Regional de Educação do Alentejo decidiu acabar com o curso de Turismo”, refere, num tom que mistura a ironia com a razão.
Licenciado em Turismo, deu aulas em Reguengos de Monsaraz até ao momento em que esse curso deixou de fazer parte do curriculum da escola. Sem emprego, refugiou-se no mais óbvio: o restaurante dos pais, onde já habitualmente dava uma ajuda. “Mas não era isso que queria fazer o resto da minha vida”, dizia, ainda sem saber que seria numa das mesas do estabelecimento que acabaria por começar a desenhar um futuro.
“Tínhamos mais de 50 gins à venda e os meus amigos, grandes apreciadores, desafiaram-me a criar uma marca própria”, conta. Problema: António não sabia sequer o que era um alambique. Da ignorância passou à pesquisa sobre o tema, de uma panela de pressão fez o tal alambique e, em dois passos, chegou a uma receita de sucesso. “Foi sorte de principiante, acho eu, nunca consegui criar outra receita tão rapidamente.”
Informou-se junto do centro de emprego e percebeu que, pedindo o subsídio de desemprego à cabeça, podia apostar na criação do seu próprio negócio. “Eu, que só bebia um gin muito de vez em quando, passei a fazer desta bebida a minha vida.”
Criou o Sharish Gin, que atualmente vende para 14 países, além de estar presente em supermercados, hotéis, bares e restaurantes em Portugal. Consigo tem seis pessoas a trabalhar diretamente, mas garante que de forma indireta já deu trabalho a mais de uma dezena. “Ah, é verdade”, faz questão de lembrar, “só contrato desempregados. Estar desse lado fez-me dar mais valor ao trabalho.”