O Novo Dancing Eléctrico. A impossibilidade da vida

Três irmãs para quem a vida parou antes de começar são as protagonistas da mais recente produção dos Artistas Unidos, naquela que é também a quinta vez que Jorge Silva Melo encena um texto de Enda Walsh

São destroços humanos que sobem a um palco que é uma casa, de luz rarefeita, numa povoação longínqua na Irlanda que cheira a mar, mas não a vida. São três irmãs que se odeiam mais do que se amam, e odeiam-se porque odeiam as suas vidas ou a inexistência de vida nas suas vidas. “O Novo Dancing Eléctrico”, um texto de Enda Walsh encenado por Jorge Silva Melo e protagonizado por Andreia Bento, Antónia Terrinha e Isabel Muñoz Cardoso – as três irmãs – e ainda Pedro Carraca – o peixeiro –, sobe ao palco do Teatro da Politécnica a partir de hoje e até 17 de dezembro.

“Esta é uma peça mesmo muito pessimista, é grotesco, é felliniano”, diz Jorge Silva Melo sobre esta nova produção dos Artistas Unidos. “Há aqui muito de RaulBrandão, das suas velhas cheias de rancor e azedume, as beatas.” Aos 19 ou 20 anos, a vida parou para duas destas mulheres, Breda e Clara. Apenas Ada, a irmã mais nova, de 40 anos, sai de casa e trabalha, e apesar de ter uma deficiência física é a única que ganha dinheiro para esta casa de mandrionas que vivem castigadas por um passado que não foi. Um castigo constantemente recuperado, e novamente imposto, pela irmã mais nova, que é também mãe, pai e carrasco. Tudo por umas bolachinhas e a ideia de um chá. E depois há Patsy, o peixeiro, ele que não é nada, é amante e filho, para voltar a ser nada para estas mulheres mas, ao mesmo tempo, ser o único com uma possibilidade de vida. O único que sai pela porta que marca o cenário e marca todas as peças de Enda Walsh. “Há sempre uma porta por onde as personagens que ele cria podem sair. Mas nunca saem. Querem a servidão voluntária.” Sem esperança possível. Ao contrário de “Lazarus”, a mais recente peça de Enda Walsh, escrita em parceria com David Bowie.

“O Novo Dancing Eléctrico” é o quinto texto de Enda Walsh que Jorge Silva Melo encena. “Fascina-me a capacidade que ele tem de salvar as personagens pela dignidade literária. Elas têm uma capacidade de poesia que normalmente não atribuímos às pessoas pobres.” Até esta peça, resultado de uma encomenda alemã, o currículo do dramaturgo irlandês mantinha-se, no geral, longe das mulheres. Foi nesta peça que escreveu, pela primeira vez, quase exclusivamente para mulheres. “Depois desta peça, nunca mais pôs mulheres nas suas obras”, conta Silva Melo.

O encenador não nega que um texto que inferioriza as mulheres de forma penosa é claramente contracorrente. Mas, pragmático e sempre colocando os atores em primeiro lugar, Silva Melo escolheu levá-la a cena agora porque “tinha três atores – a Andreia Bento, a Isabel Muñoz Cardoso e o Carraca – com as idades das personagens. Sou muito prático: só posso fazer as peças para as quais tenho os atores certos. E eu estou sempre a pensar neles, nos atores.” Além disto, Jorge Silva Melo foi seduzido pelo facto de este ser mais um texto sobre “gente muito pobre, mas que tem uma fala entre o bíblico e o poético, por vezes antiquado e provinciano. Há um trabalholiterário e real do Enda Walsh na dignificação destas pessoas. Aqui não se achincalha estas mulheres”. Fosse isto um documentário e dificilmente estas mulheres falariam assim.

Assistir à não vida destas mulheres obriga, de forma quase inevitável, à indagação da própria vida de quem assiste. E Jorge Silva Melo não nega que esse foi também o seu propósito para esta encenação. Consciente, porém, de que mulheres como estas são espécies em vias de extinção nas metrópoles da atualidade. “Mas a realidade do Enda Walsh é outra, porque ele cresceu emCork, uma região muito conservadora da Irlanda. E aquilo que, para nós, parece uma realidade distante ou impossível, nestas localidades pode ser mais próximo da realidade do que nos parece à primeira vista.”

Mas a realidade, em “O Novo Dancing Eléctrico”, é que, para Breda, Clara e Ada, a vida parou antes de começar. E não há rifas do destino que lhes possam sortear uma vida que não tiveram, não têm e já não terão.