“Este era suposto ser o painel fácil, em que vínhamos para aqui falar sobre a vitória da Hillary”, diz Bradley Tusk. “Tinha algumas perguntas preparadas, mas com este cenário talvez o melhor seja discutirmos sobre como a armazenar comida e construir abrigos onde vivermos nos próximos quatro anos”, acrescenta o moderador David Patrikarakos, responsável por moderar o painel que discutiu o resultado daquelas que o próprio apelidou de “as mais importantes eleições norte-americanas a que a minha geração já assistiu.”
Donald Trump venceu, “fazendo uma campanha que desafiou todas as regras, insultando todas as minorias e 50% da população, as mulheres”, começa por atirar Patrikarakos. Assim sendo, como venceu? “A mim só me apetece ficar na posição fetal”, começa por responder Owen Jones. “Isto é a maior calamidade para o mundo ocidental desde a guerra. Um nacionalista branco, racista, misógino e demagogo é agora o presidente da última grande potência. E acho que a principal razão para isto ter acontecido tem a ver com a revolta que tem tomado conta do mundo ocidental e em relação ao qual este populismo branco diz para não se culpar os banqueiros ou os que não pagam impostos, mas culpem antes o emigrante, o muçulmano, o vizinho do lado. Culpem o pobre em vez do rico”, acrescenta, rematando que a vitória de Trump foi também uma vitória contra as candidaturas instaladas. “Esta é uma enorme ameaça à nossa existência”, remata, perante o aplauso da plateia.
Uma ideia partilhada por Shailene Woodley. A atriz e fundadora da plataforma Up to Us, que encoraja os jovens a fazerem com que as suas vozes sejam ouvidas politicamente sublinhou o cansaço dos americanos em relação ao sistema bipartidário, o que levou a que muitos não saíssem de casa para votar. “Isso deixou-nos nesta maravilhosa situação”, ironiza.
Já Bradley Tusk, que além de gerir a Tusk Holdings, foi o gestor da campanha da reeleição de Michael Bloomberg, em 2009, para a câmara de Nova Iorque, acrescentou que, além de todos os fatores nomeados, há a questão do sexismo. “Se Hillary Clinton fosse exatamente a mesma pessoa, mas em homem, o resultado provavelmente teria sido diferente”, sintetiza. “A verdade é que este podia ter sido um grande ano para as mulheres, mas afinal acabámos com o mais misógino dos presidentes”, argumenta a atriz norte-americana que, no entanto, não acredita que a eleição de Trump ponha em causa a força das mulheres. “O feminismo é um movimento que avança através das pessoas no terreno, de mulheres que se levantam e tomam as rédeas da sua vida. Não é por termos um líder misógino nem sequer por termos uma mulher presidente que iria muda. Talvez a sua eleição até inspire mais gente para a necessidade de ainda haver muito trabalho a fazer neste campo.”
Uma cimeira em choque. As conversas acerca das eleições norte-americanas não se esgotam no interior da Meo Arena. Um pouco por todo o lado, na Web Summit, a política parece ter tomado o lugar de importância da tecnologia. Quase todos os painéis – sobretudo os que envolveram norte-americanos – abordaram o assunto. Entre a estupefação e o choque, a tristeza e a revolta, o espetro de sentimentos vinha, na maioria, pintado de cinzento. Foi o caso de Dave McClure, líder da incubadora 500 Startups, que durante o painel sobre o ego humano, em que foi um dos protagonistas, se levantou e, em gritos, perguntou à plateia que também se levantasse, em protesto. “Aren’t you fucking angry?”, gritou sucessivamente.
Fora dos palcos, pelos corredores dos vários pavilhões, a conversa repetia-se. E sim, por ali também circulavam muitos apoiantes de Trump, que acreditam poder “como homem de negócios ser positivo para a economia”. Mas as vozes maioritárias tinham um outro discurso. Um outro semblante. “Todo o dia me falaram deste assunto, muitas vezes era para me perguntarem como votei, pois isso influenciava a forma como me iriam tratar”, contou ao i, Marian Goodell, CEO do Burning Man, não conseguindo conter as lágrimas. “Não consigo acreditar no que aconteceu.”
Graeme Young, especialista em Business Development da Universidade de Newcastle, partilhava a perplexidade. O inglês acordou “chocado”. “Ainda me estou a habituar à ideia perturbadora de que o Brexit venceu, mas isto é ainda mais perturbador. Preocupa-me sobretudo a segurança global, porque Trump é um wildcard, que não sabe ser presidente, é um pistoleiro, um misógino. Que ideia irá esta vitória passar às crianças de hoje? É certo que o discurso de vitória já foi bem diferente, mas será possível, depois de tudo o que já disse e fez, agora conquistar as pessoas?”, questionou o especialista em tech transfer inglês, reforçando de seguida o receio de repercussões globais, sobretudo tendo em conta que Trump deixou claro que tenciona visitar, quanto antes, o ‘amigo’ Putin. “Para mim, isso só reforça a ideia de força unida contra a China.”
Curiosamente, mal terminamos esta conversa, quase nos esbarramos em Lily Song, cujos olhos rasgados não permitem ignorar a origem asiática. É chinesa, de Pequim, onde trabalha numa empresa de internet, a Bytedance, depois de dez anos dedicados ao jornalismo. “Na China é uma profissão muito difícil”, reconhece. Mas é com esse olhar analítico que comenta a vitória de Donald Trump, que, revela, tem sido assunto constante de uma série de plataformas e fóruns chineses que tinha passado a manhã a consultar. “Sinto-me muito triste com isto. Tenho muitos amigos americanos e chineses a viverem nos EUA e passámos o dia todo a falar sobre isto. Sobretudo porque sabemos o que Trump pensa da China – ele acha que nós roubamos o trabalho a toda a gente. E também sabemos todos o que o Putin pensa da China, por isso temos todos medo de uma nova guerra mundial. Mas eu não quero – não posso – acreditar que o resto do mundo deixe que isso aconteça”, desabafa.