«Voltarei e serei milhões!»

Há um livro extraordinário sobre Eva Perón: Santa Evita, de Tomás Eloy Martinez. Se calhar é um livro sobre um cadáver, mas também não tenho a certeza. E é um livro sobre o medo: depois de morta, Evita foi tão temida enquanto viva. A primeira dama mais amada e odiada do mundo; a mais arbitrária…

Leia-se: «Ascendeu, como um meteoro, do anonimato de pequenos papéis na rádio até um trono em que nenhuma mulher se sentara: o de Benfeitora dos Humildes e Chefe Espiritual da Nação._Morreu jovem, como os outros mitos argentinos do século: aos trinta e três anos (Gardel tinha quarenta e quatro quando ardeu, em Medellín, o avião no qual viajava; Che Guevara tinha os mesmos trinta e três quando o exército boliviano o fuzilou em La Higuera). Havia em seu redor um tremendo fetichismo: para muita gente, tocar em Evita era tocar o céu». Eva Maria Ibarguren Duarte. A Senhora dos Descamisados. Nascida a 7 de maio de 1919, na fazenda de La Union, segundo o registo da igreja paroquial de Los Toldos, ou em Junín, a 7 de maio de 1922, como menciona a sua certidão de casamento com Juán Domingo Perón, presidente da Argentina por duas vezes. «Quando escolhi ser Evita, sei que escolhi o caminho do meu povo», dizia.

De Evita tudo se escreveu e tudo se cantou. Tom Rice e Andrew Lloyd Weber que o digam. Morreu no dia 26 de junho de 1952, às 20h25. Buenos Aires parou. Os filmes foram interrompidos nos cinemas, os restaurantes fecharam, as casas de tango calaram-se e as pessoas saíram à rua num desgosto coletivo e inimitável. «No llores por mi Argentina…», pediu Paloma San Basílio. Sempre gostei do episódio que se chamou «Arte da Morte». Tiraram o sangue a Evita e encheram-lhe as veias com glicerina. A sua palidez de cera nunca teve tanta razão de ser.

Buenos Aires é uma cidade única e feminina. Mi Buenos Aires Querido, dizem no entanto os milongueiros de Noche Triste. Las Barracas, o bairro que confina com a Avenida Sarsfield, o Parque Ameghino e Sán Cristobal, a linha apertada de comboio que atravessa La Boca, meninos trocando bolas de borracha sonhando com o dia de entrarem em La Bombonera de camisola azul e risca dourada ao peito, longe dos lamentos das mães de filhos perdidos da Plaza de Mayo. O mesmo lugar em que Eva Perón protestou a prisão do seu marido em 1945.

Era aqui que eu queria chegar: também há futebol em Evita. Por ser argentina, claro!, e por ter sido o nome da primeira Supertaça de Espanha. Isso mesmo: Taça Eva Duarte Perón.

De 1947 a 1953, o jogo que opunha o vencedor do campeonato espanhol ao vencedor da_Taça Generalíssimo Franco, valia um troféu que tinha o nome de Evita. A ideia partiu do cônsul argentino em Barcelona: oferecer uma taça que começou por chamar-se Copa de Oro Argentina (1945) e que, em seguida, passou a ser uma homenagem à mulher do presidente argentino. Precisamente por estarmos em 1947, o ano em que Evita emocionou a Espanha. As multidões cresciam nas ruas de Madrid à sua passagem, homens e mulheres penduravam-se até nos candeeiros e nas esquinas das casas, milhares de bandeiras espanholas e argentinas tremulavam nas mãos do povo. E Evita dizia, nos seus discursos oficiais: «Queridos descamisados de España, tenemos que evitar que haya tantos ricos y tantos pobres, las dos cosas al mismo tiempo – menos pobres y menos ricos…». Dizem que saíram à rua mais de um milhão de pessoas só para a ver.

Barcelona, Real Madrid, Valência, Athletic de Bilbau e Atlético de Madrid têm em sua posse a Copa Eva Duarte. Um cancro matou Evita. Nas paredes dos bairros ricos de Buenos_Aires, Recoleta, Belgrano, Palermo, Barrio Norte, escreveram nas paredes – «Viva el Cáncer!» Evita viveu para além do cancro.  Escreveu um livro: A Razão da Minha Vida. Em 1955, quando a ‘Revolución Libertadora’ tomou conta do país e Juan Perón fugiu para o exílio, o cadáver de Evita desapareceu. O povo não sabia da sua santa e não podia falar alto o seu nome. Esconderam-lhe o corpo em_Milão, numa cripta, sob uma lápide que dizia: Maria Maggi. Em 1971, o marido levou-a para casa. Mas casa mesmo. Juán e a sua terceira mulher, Isabel Perón, guardaram Evita na sala de jantar do seu palacete, em Madrid, num esquife junto à mesa das refeições. Voltou para a Argentina em 1973. Embrulharam-lhe a tumba em medo. Medo do roubo. Ela limitou-se a dizer: «Voltarei e serei milhões!».