DOHA – À medida que o sol se põe sobre os estaleiros e surge uma espessa neblina que o torna vermelho escuro, os muezzins chamam para a oração nos minaretes da cidade. Doha: havia quem dissesse que era a cidade mais maçadora de todo o Golfo Pérsico. Enfim, tal como em Ialta, também os bacilos adormeciam por aqui. Mas isso foi noutro tempo. Agora há uma ideia de futuro que faz com que os arranha-céus cresçam por toda a parte como cogumelos gigantes e compridos quase a desafiar o universo. Uma pequena Dubai, ou uma pequena Abu Dhabi, é a sensação que dá. Uma tentativa de rivalizar com os centros económicos da região.
Com cerca de 11 mil e 400 quilómetros quadrados, o Catar é um país tão pequeno que corresponde, assim por alto, a um terço do Alentejo. Há 15 anos, tinha uma população de 500 mil habitantes: hoje ultrapassa os 2 milhões. É um mundo em expansão. Catar: houve tempos em que se grafava Qatar. Dava jeito para aqueles velhinhos jogos da enciclopédia. Veio do antigo nome da Catara, assinalado por Ptolomeu no primeiro mapa que se conhece da península.
Apesar da sua pequenez e de só se ter independentizado do Reino Unido em 1971, o Catar há muito que tem futebol organizado. O primeiro campeonato do país, ainda no tempo da colonização, disputou-se em 1963, três anos após a fundação da Qatari Football Association. Era uma prova sem história e sem vida. Só dez anos mais tarde veio à luz a primeira liga oficial. O Al Estaqlal foi campeão. Depois desapareceu: agora chama-se Qatar SC. Esta coisa do C e Q é embirrenta, bem sei. À portuguesa Catar; à inglesa, que é como eles gostam de europeizar por cá, é Qatar. Mesmíssimo país.
Hoje em dia, a I Divisão leva o nome de “Qatar Stars League”: tem 14 equipas: 7 são de Doha. A centralização é, aqui, uma realidade indesmentível.
O Patrão O Al-Sadd Sports Club – 13 vezes campeão; 15 vezes vencedor da Taça do Emir; 5 vezes vencedor da Taça do Príncipe; duas vezes vencedor da Taça dos Campeões Asiáticos; uma vez vencedor da Taça dos Campeões Árabes; uma vez vencedor da Taça dos Campeões do Golfo – é o clube mais poderoso do Catar. Tanto assim que tem o apodo de “Al Zaeem”: isto é, “O Patrão”. E os títulos que aí ficam rabiscados dizem respeito ao futebol. Porque “O Patrão” também é uma potência local em andebol, basquete, ténis-de-mesa, voleibol e atletismo. Nesta altura da sua vida tem uma ligação profunda a Portugal, não fosse treinado por Jesualdo Ferreira que aqui chegou em Novembro de 2015. E tem nas suas fileiras, como jogador, Ró-Ró, ou seja, Pedro Miguel Carvalho Deus Correia, que passou pelas camadas jovens do Benfica, Estoril e Farense, e jogou no Farense e Aljustrelense. Em 2011 chegou a Doha para jogar no Al Ahli, o clube mais antigo do país, que equipa à Sporting e teve a honra de um dia receber o Santos de Pelé num encontro amigável que ficou na memória de todos. Nascido em Mem Martins, Sintra, mas com raízes cabo-verdianas, Ró-Ró naturalizou-se catari e já jogou mesmo na selecção. Aos 26 anos ainda alimenta o sonho de disputar a fase final do Campeonato do Mundo de 2022. Em casa, pois claro!
Além disso, o Al-Sadd é a actual equipa do catalão Xavi, tantos anos capitão do Barcelona, e do antigo madridista Raul, que aqui esteve entre 2012 e 2014. E foi treinado por outros bem conhecidos dos portugueses: Rabat Madjer (1997/98) e Co Adriaanse (2007/08). Nos últimos anos, e depois de ter sido campeão em 2012/13, deixou fugir a hegemonia do campeonato para o Lekhwiya Sports Club, “Os Cavaleiros Vermelhos”, agremiação recente, fundada em 2009 sob o nome mais tarde alterado de Al-Shorta Doha, e que desde a época de 2010/11 já conquistou quatro títulos de campeão. Também o Lekhwiya tem dedo português já que o adjunto do técnico argelino Djamel Belmadi – como jogador passou pelo PSG, Marselha, Manchester City e Southampton – se chama Bruno Oliveira, um jovem de apenas 38 anos que trabalhou em Inglaterra.
Tal como o Al-Sadd, o Lekhwiya é um clube eclético. Há no Catar um grande incentivo para a aposta nas modalidades – no andebol, a selecção jogou a final do Mundial de 2015, e Mutaz Barshim já foi duplo medalhado olímpico do salto em altura, por exemplo – e uma liberdade de naturalização que tem feito com que muitos atletas de excepção tenham aceitado optar pela cidadania catari, muitas vezes regiamente paga.
O pigmeu Um pigmeu em terra de gigantes, dir-se-ia. Com vontade de atrair olhares estrangeiros. Um dos que se deixou encantar pelo canto da sereia do Golfo foi Pedro Caixinha, treinador alentejano de 45 anos, que recentemente pôs um ponto final na experiência mexicana do Santos Laguna. É ele o responsável técnico pelo Al-Gharafa, clube de Al-Rayyan, cidade localizada um pouco a ocidente de Doha. Fundado em 1979 como Al-Ittihad, mudou recentemente o nome para se identificar com a região a que pertence: exactamente, Al Gharafa. Foi consecutivamente campeão em 2007/08, 2008/09 e 2009/10, mas nos últimos anos perdeu força competitiva. Ainda com o nome de Al-Ittihad, chegou a ser treinado pelo infeliz Carlos Alhinho, um dos poucos que foi grande igualmente no Benfica, no Sporting e no FC Porto.
Também Lázlo Bölöni, sempre tão carinhosamente recordado em Alvalade, anda por cá. É treinador do Al-Khor, curiosamente um clube que aposta há mais de dez anos em técnicos da escola francesa – e cuja equipa B é treinada por outro português: Rui Capela, alentejano que se lançou para o futebol no Algarve e que já conquistou títulos no Paraguai, Bangladesh e Marrocos.
Campeonato interrompido, como um pouco por todo o mundo para que disputem as partidas de qualificação para o Mundial de 2018, na Rússia, é o Al-Jaish que comanda – clube do bairro de Al-Duhail, equipa do exército e que depois de muitos anos na II Divisão, procura um inédito título. O Al-Sadd de Jesualdo vai-lhe no encalço com menos dois pontos. A “Qatar Stars League” pode não ser o cúmulo da emoção, mas é uma competição curiosa com muitos nomes conhecidos. Num país pequenino, o único de toda a zona do Golfo Pérsico que não tem vestígios históricos da presença de Portugal. Mas que, hoje em dia, ouve falar português.