Vitorino Salomé. Havendo açorda protesta-se menos

“Não sei do que é que se trata mas não concordo” é o tema do espetáculo que levará Vitorino ao palco do São Luiz no próximo dia 18. Uma oportunidade para ser do contra, mas também para comemorar “Semear Salsa ao Reguinho”, primeiro álbum do músico alentejano que não vive sem uma açorda bem temperada

Zé Embirra embirrava com tudo o que via ou ouvia. Não se ficava. Carpinteiro nascido no Redondo, não havia assembleia geral do Redondense Futebol Clube que não acabasse marcada pela sentença de Zé Embirra: “Não sei do que é que se trata mas não concordo”. A última vez que se cruzaram, já em Lisboa, Zé Embirra convidou Vitorino Salomé para um copo de vinho. Em seguida desapareceu numa das ruelas do Bairro Alto.

O concerto único que Vitorino dará, no dia 18, na Sala Luís Miguel Cintra, no São Luiz, em Lisboa, ganhou nome de homenagem a Zé Embirra – “Não sei do que é que se trata mas não concordo”. Ou não fosse o próprio Vitorino um Zé Embirra. “Sou do contra por natureza. Também tem de haver alguém do contra, senão isto ficava muito no mesmo sentido, sem agitação. Mas neste momento não tenho a flecha apontada, é uma coisa mais generalizada, um descontentamento que partilho com quem verdadeiramente vive mal ou tem razão de queixa. Porque eu vivo bem, não preciso de uma vida muito exuberante, só de ter açorda todos os dias. Já estou na reforma da minha vida. Quanto mais novo era, mais rezingão era, e às vezes inconveniente. Agora estou mais tranquilo. Costumo dizer que, nós portugueses, praticamos o ódio de estimação. Eu pratico-o cada vez menos, mas ainda tenho algum no frigorífico”, assumiu ao i, explicando que o nome deste espetáculo é também o nome do primeiro single do seu próximo álbum.

Marcas da idade, que trouxe paz e um olhar mais benevolente a este redondense, mas também marcas de um retrato político mais condizente com as suas crenças. “Há uma grande descompressão para a maior parte da população portuguesa, que descomprimiu destes últimos quatro ou cinco anos e também do tempo do Sócrates, que foi muito depressivo. Quando a coligação foi para o poder criou muitas pressões e desilusões. foi exercido o choque e pavor – que foi o nome da operação de entrada dos EUA no Iraque – sobre os portugueses. Era desnecessário terem feito as coisas como fizeram. Agora pode haver pressão mas não há choque nem pavor. Sente-se que as pessoas que estão no poder agora têm alguma vontade de fazer quase as mesmas coisas, mas de uma maneira mais justa”, confessa, acrescentando que acha muito engraçado o termo gerigonça, “palavra que tem mais música do que coligação.”

Um ano em festa. Mais do que embirrar, este concerto quer celebrar os 40 anos da edição do primeiro álbum de Vitorino, “Semear Salsa ao Reguinho”, coproduzido com Fausto Bordalo Dias. Ou antes, os 41 anos. “Este é um espetáculo simbólico, que serve, não de remate de um ano de celebrações, mas de recomeço”, assume, brincando que 2016 foi passado em festa. Uma festa que, ao longo do ano, envolveu críticas a Cavaco Silva – com o tema “Louvor a Cavaco” – e a Marcelo Rebelo de Sousa – que presenteou com a música “Bom Dia Marcelo”, onde Vitorino aparece a dialogar com um dos seus burros, “o mais lindo que possa imaginar”. Brincadeiras à parte, o músico considera o atual Presidente da República “um homem inteligentíssimo, com uma capacidade de comunicação única”, ao contrário do seu predecessor que protagonizou “dez anos tristíssimos, fora os outros todos. É um homem com mau feitio. Não gostava de ser criada em casa de tal senhor.”

Na noite de 18 de novembro, em palco com Vitorino, para o ajudar a celebrar estes 40-que-na-verdade-são-41-anos estará um “pedaço do mundo rural vindo do sul”, na figura dos Camponeses de Pias, mas também Ana Vieira, Ana Bacalhau, Samuel Úria e Filipa Pais, “gente com quem trabalhei e de quem fiquei cúmplice”. Mas o convidado especial é mesmo Manuel João Vieira. Para Vitorino, o músico e pintor, fundador dos Ena Pá 2000, dos Irmãos Catita e dos Corações de Atum, que o alentejano conheceu na juventude, através da Escola de Belas Artes, e com quem costuma partilhar serões agitados pelo Chiado e Bairro Alto, é “um artista peculiar e único em Portugal, um artista completo, da renascença, com talentos difíceis de conciliar, como a pintura e a música, mas que ele concilia com muito nível. O Manuel João faz música como ninguém: é um improvisador único, um instrumentista fabuloso, um letrista extraordinário e um compositor extremo. Mas confesso que, se calhar, ainda gosto mais da pintura dele do que da música.”

Além destes convidados, há uma outra presença garantida no palco do São Luiz Teatro Municipal: “Menina Estás à Janela”. O tema, que integra o álbum de estreia de Vitorino Salomé, e que se tornou um hino incontornável na carreira do redondense. Por muito que isso não lhe agrade. “Sinto-me muito refém dessa música e tento não cantá-la., confesso. Lembro-me de uma série de concertos que dei no Teatro da Trindade e tentei não a cantar, e quando a cantava, não terminava os concertos com ela. Agora, faço o mesmo. Mas percebi que não posso ser indelicado ao ponto de dizer que não a canto. E por acaso é uma canção lindíssima, com um texto muito bonito, e uma melancolia luso alentejana. Acho que é um teto que só podia ser feito por um alentejano”, diz, com um sotaque alententejano – aliás, “redondeiro” – que nunca abandona.