Deixaram passar 18 anos. Foram quase duas décadas volvidas desde o último trabalho de originais, “The Love Movement”, de 1998. O regresso acontece agora, com o sexto disco, “We Got it From Here… Thank You 4 Your Service”, um álbum com duas caras: a da celebração e a da saudade. Um álbum de despedida, mas com a marca da perda de um companheiro, depois da inesperada morte de Phife Dawg, em março.
Q-Tip, Phife Dawg, Ali Saheed Muhammad e Jarobi White cresceram juntos em Queens, Nova Iorque, e passaram mais de dez anos a fazer música em conjunto e a marcar aquela que seria a década mais rica e desafiante na história do hip hop. Não é à toa que os anos 1990 são chamados de Golden Era e os A Tribe Called Quest (ATCQ) foram figuras de charneira desse período.
Depois do estrondoso surgimento de grupos reativos como os NWA (Niggas With Attitude) ou Public Enemy, da Costa Oeste dos EUA, onde se viviam períodos de maior tensão social, o disco de estreia dos ATCQ, “People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm”, de 1990, trazia uma outra abordagem lírica e rítmica ao hip hop: na Costa Leste, tanto os ATCQ como os De La Soul ou os Jungle Brothers – um coletivo de músicos que ficou conhecido como Native Tongues – trabalhavam as faixas a partir de discos clássicos de jazz, soul e funk, com melodias mais suaves, menos mensagens de confronto, e maior introspeção a convidar a enfrentar os problemas com a cabeça e com as palavras em vez de com punho e armas. Por exemplo: “Can I Kick It?”, a mítica faixa do primeiro disco dos ATCQ, cresce a partir de um sample de “Take A Wild Side”, de Lou Reed, onde se ouvia Phife Dawg a pedir, gentilmente, a David Dinkins para se tornar no mayor de Nova Iorque – viria a sê-lo, de facto, tornando-se no primeiro e único autarca afro-americano na história da Big Apple.
O afro centrismo, filosofia baseada na noção de que os afrodescendentes devem reafirmar um sentimento pan-africano contra o racismo global, tornou-se numa das marcas dos Native Tongues que, mais tarde, viria a influenciar muitos mais nomes: The Roots, Black Star (Mos Def e Talib Kweli), Erykah Badu, D’Angelo ou J Dilla.
A marca de q-tip O passar dos anos e a edição de discos dos ATCQ que invariavelmente recebiam os galardões de ouro e platina, mostravam que Q-Tip, MC e produtor do grupo, tinha um papel especial, sobretudo na arquitetura sonora. Os seus discos a solo, depois do último trabalho, em 1998, do grupo, vieram a comprová-lo: ele era mesmo da categoria dos sobredotados. Em entrevista ao “New York Times”, Andre 3000, dos Outkast, não tem dúvidas. “O Tip é como uma espécie de pai de todos nós. De mim, do Kanye, do Pharrell. Em criança quem é que queríamos ser? O Easy-E (NWA)? Não. Mas Q-Tip? Claro. Parece uma pessoa mais comum.” De certa forma, foi esse lado mágico que lhe deu poder de decisão – sempre por ele negado – e que fez com que o grupo tivesse parado com as edições, mesmo contra a vontade de Phife Dawg. O MC queria voltar ao trabalho, mas não o conseguia fazer sem Tip – na altura mais preocupado em reencontrar-se, em ler e em estudar. A tensão entre Q-Tip e Dawg foi real e os dois até acabam por confirmá-la no documentário de 2011, “Beats, Rhymes & Life: The Travels of a Tribe Called Quest”, do realizador Michael Rapaport.
sob o jugo da morte Entre 2004 e 2013, o grupo foi fazendo aparições ocasionais em grandes eventos de música, mas sem nunca sentirem o apelo do regresso aos discos. Até que, a 13 de novembro, no dia em que lançaram a edição comemorativa dos 25 anos do primeiro disco, apareceram reunidos para atuarem no “The Tonight Show With Jimmy Fallon”. Terá sido este momento que terá despertado um novo ímpeto criativo no grupo que viria a conduzir a este sexto trabalho de estúdio dos A Tribe Called Quest, o primeiro em 18 anos. “A energia voltou a ser a certa. Foi bom estar com os meus irmãos de novo, passado todo este tempo”, disse Tip ao “New York Times”.
Sem avisar ninguém, o grupo voltou ao trabalho e a desenhar o novo e surpreendente “We Got it From Here… Thank You 4 Your Service”. Phife e Tip, amigos que cresceram juntos desde os dois anos nas ruas e campos de basquetebol do bairro de St. Albans, em Queens, onde também começaram a partilhar cassetes e discos, voltaram a trabalhar juntos, no mesmo estúdio. Talvez por isso nos parta ainda mais o coração saber que há um lado trágico, o da morte, à volta de tão belo disco, que nos traz de volta os A Tribe Called Quest com um espírito positivo, de missão e reflexão, de intervenção poética.
A 22 de março, o MC Phife Dawg faleceu “devido a complicações relacionadas com a diabetes”. A doença já lhe tinha sido diagnosticada em 1990 e em 2008 já tinha recebido um transplante de fígado, mas parecia estar tudo bem. A notícia caiu, pois claro, que nem uma bomba entre os fãs, mas, sobretudo, nos três amigos com quem Dawg estava a gravar um disco em segredo que foi depois terminado a custo. “Foi duro sentar-me no estúdio e ouvir a voz dele. Às vezes tenho de parar porque torna-se pesado. Não é necessariamente triste, mas mesmo pesado. Sinto, literalmente, a energia dele quando ouço a sua voz”, desabafou Q-Tip.
Ouvimos Q-Tip e Phife Dawg a cantar, juntos, “gotta get it together forever” logo em “The Space Program”, a faixa que abre “We Got it From Here… Thank You 4 Your Service”. Mas não é um disco triste, pelo contrário. É um disco de celebração recheado de convidados, uns mais esperados e óbvios do que outros – de Busta Rhymes a Kendrick Lamar, passando por Anderson .Paak, Consequence, Talib Kweli, e até Jack White e Elton John.
Este é também um álbum que surge num importante período da história política e social dos EUA e as rimas refletem-no, abordando as temáticas da educação, homofobia ou racismo, mesmo que, na altura da gravação do álbum, Phife Dawg estivesse longe de imaginar que Donald Trump pudesse vir a ser o presidente dos Estados Unidos. No tema “We The People” ouvimos Q-Tip dizer ironicamente: “All you Black folks, you must go/ All you Mexicans, you must go/ And all you poor folks, you must go/ Muslims and gays, boy, we hate your ways/ So all you bad folks, you must go”. Para a despedida anunciada, fica a herança estilística de um grupo cuja voz coletiva nunca se vai calar. O disco estará à venda em Portugal a 2 de dezembro.