Maria Badia i Cutchet: “A Espanha única não existe”

Maria Badia i Cutchet é diretora de Relações Exteriores do governo da Catalunha, uma espécie de ministra dos Negócios Estrangeiros. A sua missão é convencer o mundo, e sobretudo os europeus – é uma europeísta convicta -, que têm tudo a ganhar em permitir o direito dos catalães de decidirem livremente o seu futuro. Acredita…

Foi uma semana muito intensa e dividida, com o Barcelona a perder um jogo contra a equipa do treinador histórico do clube, Pep Guardiola. Como a viveu?

Eu não sou muito aficionada do futebol mas sou, naturalmente, do Barça, e vi o jogo com o meu marido, em casa, e vi que jogaram muito bem no início da partida, mas depois começaram a cometer erros sucessivos. Pensei: no futebol como na vida, se não fazemos as coisas bem, perdemos os jogos, as eleições e tudo o resto. Não jogámos bem. Mas como era contra a equipa de Guardiola, foi uma derrota um pouco menos amarga.

E como viu o “jogo” do parlamento espanhol ao empossar Mariano Rajoy como novo líder do governo? 

Vi de uma forma menos agradada que o jogo de futebol do Barcelona. Eu acho que, neste momento, a Espanha tem três problemas fundamentais: um chama-se corrupção, outro chama-se desemprego e o terceiro é a ligação territorial das várias nações. Eu penso que este governo que saiu do parlamento, com os apoios que tem, não é um governo capaz de enfrentar estes problemas. Parece-me bem que Espanha tenha um governo, depois de tantos meses sem ele, mas este em concreto não vai resolver os nossos problemas. As mesmas pessoas que nos conduziram a esta má situação não têm condições de nos tirar dela.

Compartilha a ideia de que há um esgotamento do modelo político inaugurado pela transição do franquismo para a democracia em 1978?

Compartilho. Na Catalunha, esse esgotamento tem uma data e um facto concreto: explodiu com o recurso do PP ao Tribunal Constitucional a propósito do Estatuto da Catalunha [o estatuto foi redigido e aprovado pelo parlamento catalão, sujeito às alterações propostas pelo parlamento espanhol, depois novamente aprovado pelos deputados catalães e referendado na Catalunha; depois desse processo, os deputados do PP pediram o julgamento do Tribunal Constitucional, tendo sido chumbado por esse órgão de Madrid]. Foi aí que se rompeu com os catalães o pacto da transição. E isto é algo que está no sentimento dos sentimentos da Catalunha. Esta é a razão por que de 20% passaram para 48% os cidadãos que defendem a independência da região. É esta a razão que fez saltar pelos ares a vontade independentista dos catalães. 

Dizia-se que os independentistas catalães eram um pouco como o santo que dizia – creio que é Santo Agostinho -: “Meu Deus, fazei-me santo, mas não já.” Durante muito tempo, a burguesia catalã e os independentistas de direita estavam muito contentes por estar em Espanha. É justo dizer isso?

Na Catalunha há um partido independentista de sempre, que é a Esquerda Republicana da Catalunha, e havia um partido nacionalista de direita, que era o Convergència i Unió, que era nacionalista catalanista, e os partidos de esquerda, como os socialistas e os comunistas, que defendiam a autonomia da Catalunha, isso é o que há. Quando foi recusado o estatuto havia um governo tripartido em que estavam os socialistas, a esquerda republicana e a Iniciativa pela Catalunha [comunistas]. Quando se rompeu o pacto, a cidadania viu isso como uma afronta. Ao contrário do que dizem, isto não é uma jogada dos partidos políticos, mas uma reação dos cidadãos: este movimento pela independência nasce dos cidadãos. É verdade que, em política, os partidos fazem o que acham melhor também para eles, mas que ninguém faça confusões: isto foi e é um movimento cidadão contra a falta de respeito e de honrar os compromissos com os catalães. Para as pessoas, isso foi mais grave que a situação económica, que também é muito grave.

Como é possível, no quadro da Constituição espanhola, que diz que a Espanha é indivisível e faz do exército o garante último dessa unidade, conseguir pacificamente a independência da Catalunha?

Primeiro está a democracia e as necessidades de um povo e de um país, e depois vêm as leis. A legislação que é contrária à vontade do povo e de um país jamais será cumprida. As leis não servem para nada se os cidadãos não estão minimamente de acordo com elas. E aquilo que se verifica aqui é o mesmo que se verificava na Escócia. Aí também se diz que as relações entre o Reino Unido e a Escócia serão “for ever and ever”. E o que se passou? Quando o Partido Nacionalista Escocês ganha as eleições, tanto os trabalhistas como os conservadores concordaram que, se havia gente que queria a independência, era preciso adaptar as leis de modo a que se fizesse um referendo. Não sei o que é mais forte numa lei: se são as relações for ever and ever ou a indivisibilidade de Espanha. Sei que na Escócia se entendeu que tinha de ser feito um referendo e, em nossa opinião, este é o caminho correto.

Mas teve casos mais complicados quando houve um desacordo entre as leis e a vontade de alguns povos. Por exemplo, na ex-Jugoslávia apenas houve independência da Eslovénia depois de um início de uma guerra…

Não é o caso. Não podemos comparar a situação atual de Espanha com essa. Não acredito que o conflito possa chegar a esse nível. Eu e os meus companheiros encontramo-nos com governos de muitos países e asseguro-lhe que a maioria deles, todos dizem que é um problema interno entre Espanha e Catalunha, mas acrescentam: não posso imaginar que no meu país não se desse uma resposta política se acontecesse aquilo que está a acontecer entre a Catalunha e a Espanha.

Isso apesar de, durante o referendo na Escócia, a União Europeia ter feito abertamente campanha pelo não à independência, chegando até a dizer que não era possível a Escócia ficar na UE caso saísse do Reino Unido.

Eu não sei se leu que, nos primeiros dias, Joaquín Almunia [foi comissário europeu] disse que lhe parecia difícil que a Escócia, fossem quais fossem os resultados do referendo, ficasse fora da UE. A comissária Viviane Reding disse que lhe parecia impossível imaginar uma Escócia fora da UE. Mas no dia seguinte, depois de reunido o Conselho da Europa e os ministros, então mudaram de tom. Eu estive dez anos nos Parlamento Europeu e sei como as coisas funcionam. A maior parte dos governos não querem problemas. Quando podem, dizem que é um problema interno e que não podem dizer nada. Mas uma vez o problema em cima na mesa, eles resolvem-no. No dia seguinte ao referendo na Escócia, eu estava num programa de televisão e pediram-se uma reação ao resultado. Eu respondi: “A decisão soberana dos escoceses tem de ser respeitada. Só lamento uma coisa, o que faria a Europa caso a Escócia saísse.” Tenho a certeza que, caso os escoceses tivessem optado pela saída, a UE teria encontrado uma solução. 

Não estive muitas vezes na Catalunha, mas estive muitas vezes no País Basco e a ideia que tenho é que uma das razões da manutenção de um conflito e desacordo é que, frequentemente, a existência de um conflito com catalães e bascos é algo que agrada e dá votos aos nacionalistas espanholistas de Madrid.

Claro. Certamente que sim, e dá-lhes muitos votos. Mas tome consciência de uma coisa: nunca ouvirá falar, por parte do PP e de alguns socialistas, do nacionalismo espanhol. É como se ele não existisse. Eles querem fazer passar que o nacionalismo ou é basco ou catalão ou galego, quando é evidente que há um nacionalismo espanhol muito forte. E digo-lhe uma coisa: se em vez de, há dez anos, o PSOE ter descartado a proposta federalista e se isto tivesse sido aceite, hoje não estaríamos nesta situação de conflito. Quando o presidente Mas [o anterior presidente do governo autónomo da Catalunha] foi ver o presidente do governo espanhol e lhe disse que tinha de se encontrar uma solução equiparável à encontrada para os bascos, isso não teria chegado até este ponto. Levámos muitos anos mal. Há uma ideia de Espanha por parte de alguns partidos políticos espanhóis que não corresponde à realidade. Para mim, esta ideia de Espanha única não existe. Não estou a falar da Catalunha, falo de olhar para o que se chama Espanha. Olho e vejo uma Galiza com uma identidade própria e uma língua, um País Basco, uma Catalunha, um País Valenciano, e tudo isso que se pode observar tem como definição melhor – lamentavelmente, muito tardia – a que Pedro Sánchez [líder demitido do PSOE] deu no parlamento: federação de nações. Isto aproxima-se da realidade, poderia ter sido assim.

E ainda pode ser?

Como, neste momento, não há nada nesse sentido em cima da mesa, há muito tempo que a única coisa que nos colocam sobre a mesa é o Tribunal Constitucional. Enquanto não apresentarem nenhuma proposta, vamos caminhando para a independência da Catalunha e vamos votá-la. Se alguém fizer alguma coisa e apresentar uma proposta concreta, vamos discuti-la. Mas foi-se demasiado longe já. Todos fomos demasiado longe.

Mas o pior ainda está para vir: o governo estuda a hipótese de processar políticos catalães e prendê-los, dissolver o governo autónomo e até suspender a autonomia da Catalunha… 

Não acredito que isso acabe por se concretizar. Reprimir os independentistas seria como deitar gasolina no fogo.

Para todos os efeitos, a força do Estado está do lado de Madrid. Podem ficar numa situação do discurso de Unamuno em que este se volta para os franquistas e lhes diz: venceram porque têm a força, mas não têm a razão.

Uma situação dessas, de que fala, é impossível de acontecer no século xxi, na União Europeia. Não acredito nisso.

Tem muita confiança na União Europeia (risos).

Sou uma europeísta convicta, embora muito crítica, até porque trabalhei muitos anos no Parlamento Europeu como deputada socialista. Sei do que gosto nela e do que não gosto. Mas digo-lhe: sem a União Europeia, estaríamos muito pior. Sei que esta frase não é popular e não dá para fazer uma campanha, porque isso não vende. Mas a realidade é que há um mínimo de entendimento entre os países. Mas, neste momento, a UE teve o Brexit e tem de pensar o que quer ser para toda a gente que está na UE. E aí há um assunto importante para conseguir fazer esse debate de uma forma positiva, que é a questão do protagonismo das regiões. Estamos todo o tempo a dizer que é preciso que as coisas sejam feitas de baixo para cima e não pela imposição vinda de cima, e a única forma de isso ser possível é considerando as regiões e os cidadãos.

Isso não pode ser a abertura da caixa de Pandora: há situações de nações sem Estado e de reivindicações independentistas na Bélgica, no Reino Unido, em França, em Itália e em muitos mais sítios.

Eu, no Parlamento Europeu, levava dois chapéus, um de espanhola e outro de catalã, e estava na delegação espanhola, e trabalhava na Comissão de Cultura, onde se discutiam as questões das línguas e também do catalão. Reuni-me muitas vezes com os comissários e os responsáveis dessas áreas na União Europeia, e dizia-lhes: nas Nações Unidas há mais de 190 países e apenas seis línguas oficiais. Eu não defendo que todas as línguas que são faladas na UE têm de ser línguas oficiais, mas uma língua que é falada num território por mais de sete milhões de pessoas, 12 milhões se contarmos Baleares e Sardenha, etc., não pode ser que uma língua falada por tanta gente não tenha um reconhecimento democrático na UE. Pensem como. Isto tem de ter uma tradução para que os cidadãos percebam que também os têm em conta a eles. Infelizmente, isso não foi tomado em consideração com o argumento de que tinha de se ter em conta apenas os países e os Estados. Eu não digo que todas as regiões passem a Estados, mas as regiões têm de ter um papel fundamental na solução de democratizar a Europa. Mesmo nessa crise dos refugiados e das migrações, é preciso contar com elas. As pessoas têm de ser acolhidas e chegar a sítios concretos.

Isso não poderia configurar o perigo de um aumento de nacionalismos xenófobos? 

Não há uma só uma pessoa que, na Catalunha, esteja a propor a mudança das relações com a Espanha em bases xenófobas ou racistas. Não há ninguém que o defenda.

Defende, e os independentistas catalães defendem, que conceito de cidadão catalão?

Para nós são todos aqueles que vivem e trabalham na Catalunha. Para além disso, metade das pessoas que vivem na Catalunha nasceram noutros sítios, noutra parte de Espanha ou do mundo. Toda essa gente que trabalha e vive na Catalunha é catalã. E têm o direito a decidir. Nós não defendemos que apenas possam votar para decidir o futuro da Catalunha os que têm dez gerações na região, defendemos o contrário. A Catalunha sempre foi uma terra de acolhimento, somos e fomos sempre uma mistura de gentes. O que ocorre é que a Catalunha foi maltratada há muito do ponto de vista ético, económico e cultural. Temos dos melhores sistemas de ensino, num país onde convivem pelo menos duas línguas, o espanhol e o catalão, e outras mais. É um sistema elogiado até pela Europa por não deixar ninguém de fora. Agora, o que o governo quer é destruir isso e que há uma escola catalã e outra castelhana. Nós não discriminamos, o governo de Madrid é que quer a segregação. O que pedimos não são nacionalismos excluentes, apenas pedimos que nos respeitem. Quando o pacto entre Espanha e Catalunha se rompeu foi quando o PP desrespeitou o pacto aprovado e discutido pelos catalães, o seu parlamento e o parlamento espanhol, ao enviar o estatuto para o Tribunal Constitucional. Isto não é a democracia nenhuma. Se a última palavra não a têm os cidadãos, quem a tem?

Não acredita na separação de poderes entre justiça e os outros poderes?

Por amor de Deus, o que eu quero é que ela exista de facto.

Pensa que o Tribunal Constitucional é um órgão que executa uma política concreta?

Lamentavelmente. Está politizado. De qualquer forma, até o Constitucional tem dúvidas. Li há pouco que o tribunal declarou que, apesar de lhe terem dado mais poderes para usar em relação às autonomias, os juízes afirmaram que mesmo com esses poderes não os pretendiam usar de uma forma discricionária e imediata.

Mas a partir do momento em que se tem um poder têm-se mesmo um poder…

É muito estranho. A primeira coisa estranha é que lhe sejam dadas competências e eles sejam parte para dizer se as aceitam ou não . É toda uma construção e uma prática muito estranha. A partir do momento em que se tem um poder, têm-se mesmo um poder…

Há um problema de correlação de forças: tem 80% de pessoas que são favoráveis na Catalunha ao direito de decidir e fazer um referendo para a independência, mas apenas uma minoria é favorável à independência.

Quarenta e oito por cento. É claro que, neste momento, nós, os independentistas, não ganhamos as eleições em termos de votos. Temos uma maioria parlamentar. Há mais gente que tem claro que, tal como a situação está neste momento, a saída passa por uma consulta popular, é o caso de Ada Colau e do Podemos. O que não tenho claro é que, se houvesse o referendo, eles apelariam à independência ou a ficar em Espanha. Mas está claro que a maioria esmagadora dos catalães é favorável a fazer um referendo. O importante é deliberar. Na Catalunha, não nos deixaram fazer isso.

O problema é que Madrid considera que só é possível existir esse divórcio se os dois estiverem de acordo em separar-se.

No outro dia falava com um representante do PSOE e disse-lhe justamente isso, falando sobre a situação interna deles. Ele tinha mandado um twitt a dizer: “Em Espanha, basta um para pedir o divórcio” , referindo-se à situação de conflito entre o PSOE e os socialistas da Catalunha, e eu pensei para mim mesmo, é bem verdade para outras situações.

Vão ter referendo aconteça o que acontecer?

Neste momento fazemos várias coisas: continuamos a governar porque a vida nos exige isso, temos os nossos problemas identitários, mas há muitas outras questões por resolver que exigem que haja governo. A segunda coisa que fazemos é falar com tanta gente quanto possível, sobretudo a nível europeu, sobre a nossa situação – é preciso dizer que, atualmente, o nosso acolhimento fora de Espanha tem sido mais “poroso”; não quer dizer que estejam de acordo, mas ouvem- -nos com atenção. E a terceira coisa é que estamos atentos a qualquer proposta que o governo espanhol faça. Esperaremos uma proposta do governo de Madrid até ao último dia. Queremos o diálogo.

O jornal “La Vanguardia” dizia há uns dias que foi feito um estudo, pelo organismo do governo autónomo responsável pelo estudo do processo de saída de Espanha, dos custos económicos dessa saída.

Naturalmente que todos esses cenários têm de ser previstos. E alguém tem de fazer esses estudos. Nós estamos a fazer isto a sério. Há dois anos, alguém disse que isto era como um suflé : ia subir e depois baixar. E Aznar disse que antes do fim estaríamos a lutar entre nós. Não se passou nem uma coisa nem outra. Isto vai ser a sério, porque a população está farta desta situação. Até há gente que quando lhes dizem “vão ficar fora da UE?”, respondem: “E depois, a Suíça não está fora da UE?” Eu não estou de acordo com esta posição, quero que fiquemos na UE, mas percebo que as pessoas estejam fartas da situação. As pessoas chegaram a um momento em que não querem aguentar mais abusos. Há poucos dias, o Tribunal Constitucional chumbou uma lei da Catalunha que proíbe as touradas e quer obrigar os catalães a terem touradas. O cúmulo é que uma lei semelhante existe nas ilhas Canárias e nunca o Tribunal Constitucional se lembrou de ter esta posição. Isto, o que é é apenas vontade de fazer um conflito. O resultado é que cada dia há mais independentistas.