O sábado de manhã, que até estava a ser de céu azul em Lisboa, ficou um bocadinho mais negro logo pela manhã cedo com a notícia da morte de Sharon Jones, a voz e alma do grupo soul Dap Kings, que tornou ainda mais trágico este ano de 2016 que já nos levou tantos ícones do mundo das artes. Sharon Lafaye Jones, nascida em Augusta, Georgia, nos EUA, tinha completado os seus 60 anos a 4 de maio de 1956, mas os últimos três anos tinham sido de muita luta e sofrimento, desde que lhe foi diagnosticado um cancro no pâncreas. Ainda assim, nunca deixou de cantar. Sharon foi daquele género de cantora e mulher que, de cada vez que soltava a voz, silenciava o mundo à sua volta. Cantou desde pequena – era a mais nova de seis irmãos – mesmo que lá em casa não houvesse tanto tempo quanto isso para se cantar. Foi ainda quando era garota que a família deixou a Gerogia e se mudou para “Bed Stuy”, um bairro de Brooklyn, Nova Iorque, onde a pequena Sharon começou a cantar em público, na igreja. Há uns anos, aquando de um regresso seu a Portugal – depois de tantos espetáculos memoráveis, de Norte a Sul do País, o último aconteceu a 23 novembro de 2014, na Aula Magna – conversei com por telefone com a senhora Jones. Andava a comprar mercearias lá no bairro, e enquanto escolhia frutas e hortaliças, contou que percebeu que queria cantar para o resto da vida no dia em que fez o seu primeiro solo na missa. Era altura de Natal. “Ouvi as pessoas a comentar: ‘Uau! Aquela miúda sabe mesmo cantar a Silent Night’!”
A embalar reclusos Sharon Jones nunca mais parou e nunca deixou que a sua voz se calasse, nem quando lhe diziam, nos anos 70, que ela não tinha nem corpo nem a aparência para ser cantora. Pobres de espírito, como estavam enganados! “Fui recompensada pela minha insistência”, riu-se.
Sharon foi cantando em bandas de funk e soul, mas, pelo meio, e para o sustento, teve de trabalhar como guarda prisional na prisão de Rikers Island, no Bronx. “Houve uma vez que os presos recusaram-se a entrar para as celas. Diziam que só entravam depois de eu cantar ‘The Greatest Love of All’, da Whitney Houston. Lá tive cantar.” Foi depois da experiência na penitenciária que Sharon Jones, já com 40 anos, conheceu Gabe Bosco Mann, baixista dos The Dap Kings e fundador da Daptone Records, que vira a editar o primeiro disco da cantora, e que é também casa de outros nomes da soul e R&B, como Charles Bradley, Naomi Shelton ou The Sugarman 3.
Foi em 1996 que Bosco Mann ouviu Sharon a cantar durante uma sessão de gravações de Lee Fields (outro dos nomes da Daptone) e ficou arrepiado com tamanho poder vocal, que sempre se percebeu que era uma vida a ser cantada com o coração.
O primeiro disco de Sharon Jones foi editado em 2002: “Dab Dippin’”, que seria a primeira colaboração com os The Dap Kings, que se prolongaria durante mais cinco trabalhos. Foi com “100 Days, 100 Nights” que Sharon se deu verdadeiramente a conhecer. Sucesso que se confirmaria com “I Learned The Hard Way”, que chegaria ao 15º lugar na tabela de discos mais vendidos nos EUA. Em 2014, Sharon Jones editaria o seu último disco de originais, “Give the People What They Want”, que foi nomeado para os Grammy na categoria de Melhor Album R&B. Este foi um disco que teve de ser adiado, já que foi nessa altura que viria a ser diagnosticado o cancro a Sharon e que que a obrigou a fazer quimioterapia. Esse período, tragicamente marcado ainda pela morte da sua mãe, acabou por ser documentado por Barbara Kopple em “Miss Sharon Jones!”
“Olho para esse disco como uma grande conquista. Algumas canções ganharam outro significado, claro. Quando gravei ‘Get Up And Get Out’ estava a cantá-la para um gajo… Hoje canto como se fosse uma ordem para o cancro sair de mim”, disse. O cancro levou-lhe a vida, mas não conseguiu apagar tudo o que Sharon deu à música. Tanto cantou que ganhou o seu lugar na eternidade. O mundo da música despediu-se de uma mulher-coragem que dizia que a música era a sua vida. “Cantar liberta tudo o que há de mal em mim e tira-me todos os problemas do caminho.”