França. E, do nada, Fillon

Fillon surpreendeu na primeira volta das primárias da direita francesa. Bateu o favorito Alain Juppé e defenestrou o antigo patrão, Sarkozy. Vindo do nada, o católico conservador que defende o fim do casamento gay e uma reaproximação à Rússia tornou-se o provável rival de Marine Le Pen.

O inesperado começa a tornar-se pouco surpreendente. As sondagens voltaram a errar, desta vez na primeira volta das primárias que vão decidir o candidato do centro-direita francês às eleições presidenciais, que se realizam daqui a pouco mais de seis meses. Não foi o moderado Alain Juppé a terminar em primeiro, como se antevia, nem tão-pouco o antigo presidente Nicolas Sarkozy a acabar em segundo, na sua recém-adquirida veste de uma Le Pen mais branda. O vencedor foi François Fillon, católico conservador, ultraliberal e duro para com a imigração, que até há dias surgia num distante terceiro lugar, muitas vezes com dez ou menos pontos de intenções de voto. Na noite de domingo conseguiu muito mais do que isso: 44%, bem à frente dos 28% de Juppé e dos 20,6% de Sarkozy, para quem trabalhou como uma espécie de primeiro-ministro subalterno, por quem foi insultado durante a campanha dos Republicanos e quem parece agora ter atirado de vez pela borda fora da política francesa.

Da noite para o dia, Fillon transformou-se não só no mais provável candidato do centro-direita à presidência, mas também no mais plausível próximo presidente francês. As sondagens – que, apesar de todos os seus erros, são ainda o melhor guia – sugerem que ninguém está mais bem posicionado para bater Le Pen numa segunda volta do que o homem escolhido pelos Republicanos, o partido que Sarkozy rebatizou há um ano, quando ainda se pensava o candidato natural da direita francesa. Fillon tem ainda de disputar a segunda volta com Juppé no domingo, mas não se adivinha tarefa fácil para o moderado alcaide de Bordéus. Juppé não tem de superar apenas o défice de seis pontos da primeira volta: tem de enfrentar também o eleitorado mais conservador e anti-imigração dos Republicanos, o mesmo que se manteve fiel a Sarkozy e agora deve votar em massa em Fillon – o ex-presidente recomendou mesmo o voto no seu antigo primeiro-ministro. A surpreendente onda de católicos conservadores que acorreu_à votação de domingo também não deve ficar em casa para a semana. Juppé precisaria de um pequeno milagre, como a esquerda acorrer em grande número às primárias abertas. Dos socialistas, aliás, ninguém espera um candidato credível. Emmanuel Macron, candidato independente com um pé na direita e outro na esquerda, pode ser o mais favorecido pelos resultados de domingo.

Direita em disputa Fillon pode travar a presidência de Le Pen, mas não lhe está tão distante assim em alguns temas. Diz que a sua grande prioridade é a economia e não a imigração, mas defende um limite constitucional à entrada de trabalhadores estrangeiros, um travão ao direito ao casamento, procriação medicamente assistida e adoção por casais do mesmo sexo, mais soberania na União Europeia e uma reaproximação da Rússia e de Vladimir Putin, e aponta o dedo ao islão como sendo a causa fundadora do terrorismo – “não há um problema religioso em França”, escreveu no seu mais recente livro, sobre o combate ao islamismo radical, “existe, sim, um problema ligado ao islão”. Para além disso, Fillon, como Sarkozy, quer retomar uma ideia de grandeza histórica francesa. Quer fazê-lo ensinando a história do país como “um romance nacional”. Nas suas palavras, citadas pelo “Libération”:_“O primeiro passo para a reforma nacional reside no passado, na aceitação da história. Nós somos únicos! Por que razão devemos pedir desculpa por isso? Porque é que os jovens franceses ignoram partes da sua história e, pior ainda, se envergonham dela?”

No campo económico, o antigo primeiro-ministro quer explodir a tradicional linha francesa de resistência às correntes neoliberais. Fillon, aliás, diz que Thatcher é uma sua heroína.
O seu programa parece comprová-lo: quer aprovar um código fiscal altamente favorável a grandes empresas, propõe cortar meio milhão de postos de trabalho no setor público – uns 10% da força atual –, aumentar a idade de reforma para os 65 anos até 2020 e elevar o máximo de horas semanais na função pública das 35 atuais para 39. Fillon já dissera no governo de Sarkozy que o país estava perto do precipício financeiro e agora quer salvá-lo: “Identificam-me como um liberal da mesma maneira que pintavam cruzes na porta dos leprosos na Idade Média. Mas sou apenas um pragmático!”.