Nesta noite de chuva, "Dilúvio é o chef", canta Beware Jack que tem a seu lado, precisamente, Frankie Dilúvio aka Blasph. A dupla, que lançou um dos discos do ano, "OProcesso", está na fumarenta Garagem Epal, casa da curadoria Ciência Rítmica Avançada, a disparar boom bap clássico, hip hop de fino recorte – e do melhor que se faz cá na terra.
Foi mais uma breve e bem aproveitada paragem para fugir à chuva. Mas agora é hora de Elza Soares. "Eu quero cantar até ao fim, me deixem cantar, la la la la", canta a rainha, sentada num trono, erguida por cima dos cinco músicos que a acompanham. A mulher que foi ao fim do mundo e voltou sempre, esteve esta semana em Portugal para três concertos e o último foi aqui no Coliseu dos Recreios. "Boa noite, minha gente! Tudo fixe?" A casa cheia responde com gritos e aplausos ao pedido de Elza: "Quero ouvir muito barulho", avisa.
Elza é uma das grandes referências do samba. Mas não é um carro elétrico que traz ao Mexefest. É samba rock, é punk, é funk sujo. É o Brasil de hoje, musicado por nomes da cena musical contemporânea de São Paulo – ainda que o grande responsável seja o produtor que hoje a acompanha em palco, Guilherme Kastrup. "A carne mais barata do mercado é a minha carne negra." Elza carrega na voz a história de uma vida de sofrimento, de perda, de sangue, suor e lágrimas. E de muita sobrevivência. Celebra ela e celebramos nós que, aos 79 anos, a cantora queira continuar a fazer a festa, mesmo que hoje já tenha de vir cantar numa cadeira de rodas – excêntrica sempre, até ao fim. "Cadê os gritos?", pergunta no fim de “Luz Vermelha”.
Este concerto não é uma homenagem: é o presente. São os temas de "Mulher do Fim do Mundo", o seu primeiro disco de inéditos em 60 anos, que há poucos dias ganhou um Grammy Latino, que é desenhado com guitarras, às vezes distorcidas e com feedbacks – é rock n roll, claro. É a prova de uma mulher que não se entrega, não se rende. E é a melhor herança que Elza nos deixa nesta vinda a Portugal. Beleza, mana! Eterna moleque.
Deixamos Elza a encantar o Coliseu mais uns momentos e fazemos uma viagem avenida acima. Paramos para ver o rapper do Porto, Keso, com Oliveira Trio a fazer uma festa feliz, sorridente, e a juntar a sua prosa, o rap de “KSX2016” e “O Revólver entre as Flores” a um universo de rock dos anos 1960 com de bateria, baixo e fender rhodes.
Mais acima, no Cinema São Jorge, oportunidade de nos sentarmos um pouco para apreciar o regressado virtuosismo dos Digable Planets, o coletivo de hip hop formado por Ishmael "Butterfly" Butler, Mary Ann "Ladybug Mecca" Vieira e Craig "Doodlebug" Irving, que nos anos 1990 nos brindou com dois discos imprescindíveis, sobretudo "Blowout Comb", um álbum de 1994, trabalho de requinte e fino recorte na fusão entre a métrica do hip hop e o jazz.
Foram essas memória que o trio, a fazer uma digressão de reunião, trouxe a Portugal. E quando falamos em virtuosismo, falamos à solidez da banda que suporta as vozes. Um baixo carregado de groove, uma bateria com aquele toque essencial no rap, mas que sabe brindar o público com riffs de improviso. Temos ainda um pianista, um percussionista e um guitarrista que conferem salpicadelas do funk – tudo a fazer sentido.
A noite ainda se esticou por mais duas salas: no Tivoli BBVA os Irmãos Makossa a girar discos e a fazer a festa com os ritmos da música africana da década de 1970; e, no Coliseu dos Recreios, as batidas do produtor Branko (Buraka Som Sistema). A festa continuou, mas só para alguns. Outros, já a deitarem as mãos aos bolsos para ir buscar lenços de papel – fruto de uma noite de pés molhados – optaram por encerrar ali a edição de 2016 do Vodafone Mexefest, com a garantia de um regresso no próximo ano.