Antes de mais porque ainda se vive a ressaca da eleição de Donald Trump, uma situação de dor física e vergonha alheia para Zimler, que apesar de ali já não viver, nunca deixa de prestar atenção ao país onde nasceu e cresceu. Depois porque, falar com Zimler, acaba sempre por ser falar sobre a vida. Sobre as pessoas. Sobre o amor. Sobre Alexandre Quintanilha, físico e deputado do PS, o homem com quem Richard Zimler descobriu, há quase 40 anos, que viajar acompanhado é tão melhor do que viajar sozinho.
Em 2012, disse numa entrevista que já não era o mesmo homem que escreveu “O Último Cabalista de Lisboa”. Esse homem e o que agora escreveu “O Evangelho Segundo Lázaro” são muito diferentes?
Sim, bastante diferentes. Há uma diferença de idade de quase 20 anos e todos nós mudamos imenso em 20 anos. Não quero ser um homem parado no tempo. Aliás, isto vai soar mal para algumas pessoas, mas lembro-me de um amigo comunista dizer do Álvaro Cunhal que era um homem que nunca mudou de opinião. Isto, para ele, era um elogio, mas para mim seria terrível. Quem gostaria de ser a mesma pessoa aos 60 que era aos 20? O Richard Zimler que escreveu “O Último Cabalista de Lisboa” já não existe.
Quais são as principais diferenças entre essas duas versões de si?
Estou mais maduro. Em termos de escrita, sei muito melhor escrever um romance, o processo e as técnicas envolvidas, os meus objetivos e como atingi-los. Por exemplo, em termos de pesquisa. Quando fiz “O Último Cabalista de Lisboa”, durante um ano pesquisei a vida quotidiana em Portugal. Um ano inteiro sem escrever nem a primeira palavra do livro. Reuni um monte gigantesco de documentos. Só que não estava a escrever uma enciclopédia e 95% da informação que recolhi não podia utilizar. Agora sei fazer pesquisas de forma mais eficiente. Tornei-me um escritor mais prático e isso dá-me mais tempo para me focar em aspetos da escrita que são, para mim, cada vez mais importantes. Agora posso gastar mais tempo com as nuances e subtilezas da escrita. E cada vez mais gosto disso – como escritor e leitor. Estou cada vez menos interessado no grande enredo e mais interessado na qualidade de escrita, na forma como o autor conta a sua história.
Em algumas das primeiras críticas a este livro fala-se da sua ressurreição como escritor. Por um lado é um elogio, mas por outro é um comentário que apaga 20 anos de escrita?
Não sei bem qual a minha interpretação desse comentário. Acho que o João Céu e Silva, jornalista que o fez, aproveitou a história do Lázaro para criar uma espécie de jogo de palavras. Acho que quis dizer que voltei a escrever sobre temas religiosos e místicos, o que é verdade. “O Último Cabalista de Lisboa” era sobre um jovem místico e judeu. Agora apresento um Jesus que é um místico judeu na tradição milenar judaica. Um dos meus objetivos era devolver a Jesus Cristo o seu judaísmo.
Além desse desejo, o que mais o fascinou neste tema, que já foi tratado pelas mais variadas formas de arte, e suscita sempre discussão entre investigadores?
Há excelentes livros sobre este tema, li muitos deles. Também li outros dos quais discordo profundamente. Mas eu tinha uma perspetiva que me deu uma liberdade quase total: queria escrever do ponto de vista de um amigo de infância de Jesus. Obviamente que é uma ficção, estou a pôr-me na pele do Lázaro, mas isso deu-me uma liberdade imensa para falar, mais do que da missão de Jesus, da sua importância na vida de uma só pessoa, Lázaro. Nunca ouvimos, por exemplo, a crucificação de Cristo contada por um dos seus amigos de infância.
Este é um livro escrito por um homem que tem que tipo de relação com a fé?
Esse é um assunto curioso, no qual andava a pensar muito. A fé não é um exclusivo das religiões. Ainda na outra noite estava a falar com o Alexandre e ele disse-me que há pessoas que têm fé na ciência, o que é uma contradição. Lázaro acorda no seu túmulo e não tem qualquer memória de uma vida após a morte e começa a perder a sua fé em Deus e na vida após a morte, mas nunca perde a fé no seu amigo, Jesus. A minha vida também funciona assim. Por exemplo, posso perder a minha fé nos EUA com esta eleição, e perder a fé na inteligência dos americanos e no próprio sistema democrático porque Hillary Clinton ganhou por quase dois milhões de votos e não será presidente. Mas não perco a fé nos meus amigos, nas pessoas que amo. Acho que quase toda a gente funciona assim.
Mas existe a ideia de que a fé foi usurpada pela igreja e que aqueles que não são religiosos não têm direito a ter fé.
Pois, mas para mim não é assim. Para mim, não é na religião organizada que reside a fé. Quem precisa de um padre ou rabi para ter fé, é uma pessoa com problemas. A fé é uma coisa individual. A voz de Deus fala dentro de cada pessoa, não fala só numa igreja. Aliás, digo sempre que quem precisa dos dez mandamentos para ter uma vida eticamente responsável, está com problemas, porque essas regras deveriam ser interiorizadas. Tenho fé na boa vontade e compaixão de algumas pessoas. E tenho fé na capacidade humana de amar e ser amado, de encontrar justiça. Mas confesso que, quando vejo uma eleição como a dos EUA, fico duvidoso se o ser humano tem evoluído o suficiente para aproveitar o noso magnífico mundo.
Outro conceito profundamente associado às religiões organizadas, e que também está presente neste livro, é a culpa. A forma como as religiões organizadas incutem o sentimento de culpa ajuda a mantê-las vivas?
O sentimento de culpa é complicado… Infelizmente as religiões têm a tendência de o inculcar e fazer propaganda para convencer as pessoas que são culpadas de tudo, só por terem nascido. Mas a culpa também pode ser útil, pode provocar as pessoas para mudarem comportamentos. Um marido que magoa a mulher, traindo-a, a culpa que sente pode provocar mudanças positivas na sua vida. Ou seja, a culpa não é só boa ou só má.
O que há neste livro e na relação entre Jesus e Lázaro que tenha a ver com a sua relação com o seu irmão, Michael?
Pouco. O meu irmão era uma pessoa muito difícil. Aquele género de pessoa que estava sempre a testar o amor dos outros. Provocava, provocava, provocava e quando a outra pessoa não correspondia ao teste, ele apontava o dedo a dizer que não o amávamos. Nunca estava satisfeito, Jesus não era assim. Uma amizade e amor como os que existem entre Jesus e Lázaro aprendi com a minha mãe. E com o Alexandre. Quando amamos outra pessoa incondicionalmente, é uma das glórias da vida. A minha mãe também era uma pessoa muito complexa e frustrada. De uma certa forma, azeda. Mas mesmo quando gritava comigo e me chamava nomes, já perto do fim, nunca perdi o amor por ela. E sei que ela sentiu mesmo por mim. Lembro-me que, perto do fim, a minha mãe teve um enfarte e não tinha forças para tomar duche sozinha. Por várias vezes a ajudei. Ela estava nua e eu a lavá-la e nunca me senti incomodado com o seu corpo velho, tal como ela não ficou incomodada por mo mostrar. Aquela mulher deu-me luz e isso cria um amor que não admite vergonha. Sinto o mesmo com o Alexandre.
A morte continua a ser o tema que mais atormenta o ser humano?
Absolutamente. Os grandes temas são universais, as grandes questões de hoje em dia já o eram há dois mil anos: qual o significado da minha vida? O que acontece depois de morto? Se nada acontecer qual é o propósito disto?
Não consegue encontrar propósito na vida se não houver existência depois da morte?
Podemos inventar um propósito. Os ateus e agnósticos inventam razões: cuidar dos filhos, do planeta, ganhar um Nobel… Não tenho nada contra isto, é o que faço. O meu propósito é contribuir, através dos meus livros. Para mim isto já chega como razão para viver.
Na mesma entrevista que citei, de 2012, que deu com o seu marido, Alexandre Quintanilha, comentavam como tinham acabado de votar em Obama mas que receavam Mitt Romney, que consideravam mais perigoso do que Bush. Trump será ainda mais perigoso?
Mais perigoso e mais ignorante. E mais irresponsável também. É um homem do espetáculo. Agora vai estar na Casa Branca e a verdade é que ninguém sabe muito bem o que ele vai fazer. Mas as indicações são péssimas, basta ver as primeiras pessoas que escolheu para a equipa. O seu conselheiro chefe é um supremacista branco, racista, antissemita!
Quando se soube os resultados, o discurso que mais se ouviu, sobretudo na Europa, foi que os americanos tinham votado mal. Mas depois de apurados os resultados finais percebemos que Hillary Clinton teve mais dois milhões de votos. O problema é dos americanos ou do sistema?
Dos dois. O colégio eleitoral já não tem pés nem cabeça, devíamos acabar com isso porque só distorce a eleição. É a segunda vez que a pessoa mais votada não acaba presidente. Chega! Mas sobretudo esta eleição mostra uma América polarizada entre idosos e jovens. Os jovens votaram claramente a favor de Hillary Clinton.
Como explica que uma percentagem relativamente pesada de mulheres tenha votado em Donald Trump?
É um fenómeno muito comum – nos EUA e noutros países. Muitas mulheres interiorizam o desprezo da sociedade para com elas. Quando estava a estudar na Carolina do Norte houve uma tentativa de passar uma nova emenda à constituição que se chamava Equal Rights Amendment, e a este propósito houve uma marcha de 20 ou 30 mil mulheres contra a emenda! Aprendi aí uma grande lição: as minorias – apesar de as mulheres já não o serem – interiorizam o desprezo das maiorias. Acho que é uma espécie de lavagem ao cérebro. Quando uma menina cresce numa família de cristãos fundamentalistas, onde recebe uma formação diferente da do seu irmão e os pais e avós estão sempre a dizer-lhe que o seu papel é diferente, algumas têm a força de resistir, mas outras acabam por aceitar o que lhes dizem.
Acredita que ainda há muitas mulheres que crescem nesse retrato que acabou de fazer?
Sim! Claro que em cidades como Nova Iorque, São Francisco, Los Angeles uma jovem mulher pode ter uma vida igual a um jovem rapaz. Mas noutros sítios é muito diferente. E há outra coisa que para os europeus é muito estranho, mas que acontece. Nos EUA, o município pode determinar o currículo das suas escolas. Pode determinar, por exemplo, se os professores de ciência vão ensinar evolução e criacionismo como se fossem igualmente científicos. Isto promove uma sociedade com variações gigantescas entres estados. Massachusetts é o estado com maior nível de escolaridade e votou Hillary Clinton; Arcansas é o oposto e votou Trump. Para nunca mais termos um demagogo ignorante como presidente a única solução duradoura é dar aos jovens uma educação completa.
Quando soube da vitória de Trump referiu que sentiu “dor física”. Os resultados eleitorais fizeram com que se sentisse um pouco mais português e menos norte-americano?
Não. Gosto muito do estatuto híbrido que tenho, só me dá vantagens ter a dupla cidadania, um cérebro que é metade português e metade americano, falar duas línguas. Em criança nunca pensei que teria esta possibilidade de viver como mutante. Mas o que senti com estes resultados foi uma grande vergonha por ver o meu país de origem controlado por um ser primário, grosseiro, ignorante, racista, xenófobo, misógino.
O que o preocupa mais em relação a Trump: as grandes questões, como são os conflitos internacionais; ou questões sociais como o Obamacare, a despenalização do aborto, o casamento homossexual?
A curto prazo tenho mais receio em relação às questões sociais porque vai levar algum tempo até Trump conseguir estragar a nossa política internacional. Ele não pode falar com a Angela Merkel como fala com a Hillary Clinton, por exemplo. Os primeiros estragos terão a ver com a vida quotidiana dos americanos. Primeiro estou convencido que ele vai tentar, através das nomeações para o Supremo Tribunal, anular a decisão Roe Vs Wade, uma decisão histórica que descriminalizou o aborto e mudou a América em termos de direitos femininos. Provavelmente, o que vai acontecer é que esta decisão será devolvida aos estados e, num dia, estados como o Arcansas e o Indiana vão criminalizar o aborto outra vez e as mulheres desses estados vão ter de viajar para outros estados para fazerem um aborto.
Um pouco como aconteceu, durante anos, com as portuguesas que tinham de ir até Espanha.
Exatamente. Ou isso ou fazer ilegalmente, o que é um perigo para a saúde. Isto é discriminação para com as mulheres mais pobres. Depois, acho que rapidamente Trump vai criminalizar a utilização da marijuana para fins medicinais. E também já ameaçou baixar o nível mais alto de impostos para as empresas de 35% para 15% – mas onde vai conseguir ir buscar as receitas que vai perder com isto? Em cortes na cultura, na educação e na saúde, ou seja, Obamacare. Ele prometeu aos seus apoiantes que iria eliminar o Obamacare, e tem de dar aos seus apoiantes o que prometeu. Já para não falar dos acordos de Paris. Os republicanos, hoje em dia, são um partido anti-científico. Por último, acho que grupos mais radicais de direita e milícias como o Ku Klux Klan, se sentem empowered com esta vitória. A comunidade negra, que no último ano já teve muitos episódios com forças policiais, neste momento sente-se ameaçada.
Tal como o Richard se sentiria se vivesse atualmente nos EUA, sendo homossexual?
Não gostaria de ser homossexual e viver numa zona rural dos EUA. Mas acho que as grandes cidades vão resistir sempre – ele nunca vai conseguir tirar de Nova Iorque o que é especial na cidade. As pessoas marginalizadas vão encontrar refúgio nessas grandes cidades.
Em 2010, em resposta ao questionário Proust, dizia que as suas ocupações favoritas eram escrever e fazer festinhas. É uma boa forma de o descrever: por um lado o homem que escreve, por outro o homem dos afetos?
Sim, são as duas partes da minha vida. A minha parte profissional é escrever, escrever, escrever. Escrever é o meu pequeno contributo para o mundo. Depois tenho a minha vida privada e gosto de mimo. Não sou uma pessoa complicada: preciso de mimo e algumas horas por dia para escrever. Com 60 anos já não tenho força para ter uma vida complexa. Escrever e mimo chegam-me.
E não sobra nada do menino que, aos 13 anos, sonhava ser o basquetebolista Dr. J?
O Dr. J era espetacular! Primeiro quis ser jogador de basebol, depois jogador de basquetebol, depois rockstar. Nada disso resultou. Mas ainda há uma parte de mim que é criança: gosto de cantar em casa e gosto de imaginar que sou o Dr. J. Se pudesse voltar atrás teria dedicado mais tempo ao basquetebol. Mas quando somos jovens não percebemos as nossas capacidades, só pensamos que somos estúpidos e feios. Agora sei que tinha certas capacidades que não explorei porque não tinha confiança em mim.
A consciência da homossexualidade teve influência no facto de não ter explorado melhor essas capacidades, nomeadamente atléticas?
Não, era um grande atleta. Nunca questionei a minha masculinidade.
Mas a sua descoberta da homossexualidade aconteceu muito cedo, não foi?
Sempre suspeitei, desde os dez anos. Porque as minhas fantasias sempre envolveram homens. Mas quando temos essa idade nem percebemos o que isso significa. Quando percebi que deveria fantasiar com raparigas fiquei em pânico. Tinha uns 17 anos.
Que é uma fase já complicada por si só.
A adolescência é terrível, é um período em que achamos que não temos valor. E ser homossexual é outro peso porque achamos que nunca vamos ter amigos, que os pais nos vão rejeitar. Ainda por cima, não tinha os tiques mais estereotipados dos homossexuais, portanto pensava que, se realmente fosse homossexual, seria um homossexual muito esquisito e ninguém me iria aceitar.
Quando chegou a paz em relação a si próprio e à sua sexualidade?
Apenas quando me assumi. Percebi que ia perder alguns amigos, mas que ia ganhar outros. Foi uma libertação espetacular, que aconteceu já em São Francisco. O segundo passo para me sentir em paz foi quando me apaixonei pelo Alexandre. A sensação de estar apaixonado foi tão forte no meu corpo que foi impossível pensar que não era correto. Se sentia o que sentia, obviamente que esse era o caminho certo. É pena que nem toda a gente tenha essa experiência de se apaixonar por alguém de forma tão forte. Eu fiquei siderado com amor. Por isso digo que a diferença para mim não é entre hetero e homossexuais, mas entre pessoas que compreendem a paixão, o amor e o sexo, e os que não compreendem. Quando oiço um homofóbico falar acho sempre que é alguém que nunca quis passar dez dias seguidos na cama com uma pessoa. Senão compreenderia. Tenho pena dessas pessoas.
Perguntam-lhe muitas vezes qual o segredo para estar quase 40 anos com a mesma pessoa?
Sim. Mas não sei se há um segredo. Acho que tivemos sorte. Gosto dele e evoluímos juntos – acho que isso é importante. Qualquer casamento tem três elementos: eu, o outro e o casamento. Quem não valoriza essa terceira entidade não vai durar. Depois é preciso haver respeito. Isso foi uma conquista difícil para mim porque o modelo que tinha dos meus pais não era bom – eles tinham uma relação péssima, não se respeitavam, diziam coisas abomináveis. Tive de conquistar esse respeito, porque amava o Alexandre, mas no início não respeitava a sua opinião, a sua independência, a sua maneira de ser, muito diferente da minha.
É preciso aprender a amar?
Sim. Isso aprendi com a minha mãe, apesar de todas as dificuldades que tinha com ela. Podíamos ter uma discussão terrível e ela pegava na minha mãe e dizia: “Podemos voltar ao início porque isto não correu bem?”. E eu confiava na mão dela. Foi a minha mãe que me ensinou que, por vezes, basta dar um beijinho ou pegar na mão. Nunca me deito zangado com o Alexandre, não sou capaz. Isto foi o Alexandre que teve de aprender comigo. Ele não confessava que estava chateado, durante dias, semanas, e depois explodia. Isso não dá. Antes de irmos para a cama, se temos algo para falar, eu digo: “Sei que estás cansado, mas temos de falar, são dez minutos.” E resulta.
Voltou a falar da sua mãe. Foi uma presença mais vincada na sua vida do que o seu pai?
O meu pai não era uma pessoa afetiva, não mostrava as emoções. Exceto a raiva. Era um homem frustrado, zangado, violento. Criava um clima de medo em casa. A qualquer momento podia rebentar como uma granada. Por isso nunca lhe pedia nada, nem opiniões nem ajuda, pois não sabia como ele iria reagir. Ainda hoje tenho dificuldade em pedir ajuda.
Falou com os seus pais sobre homossexualidade?
Sim. Mas foi muito difícil com o meu pai. A nossa relação não era boa. Ele só queria que eu tivesse uma profissão que me desse dinheiro. Mas pelo menos deixou-me viver. A minha mãe era uma mulher abatida, que tinha medo da vida e das pessoas. Aconselhava-me sempre a não arriscar, mas eu queria arriscar! Mais tarde passei eu a ser o pai e ela o filho. Quando ela me mostrava o seu lado contido, eu ficava fulo, e dizia-lhe que não aceitava a conversa dela de que não era nada! Lembro-me que, depois de o meu pai morrer, ela quis vender o carro dele. E pediu-me para tratar de tudo porque não sabia pôr um anúncio. Tinha um mestrado em bioquímica, como é que não sabia pôr um anúncio? Mas depois o meu irmão Michael era como o meu pai e minava tudo. E lá tinha eu que lhe dar força outra vez para o fazer sozinha. Lá acabou por colocar um anúncio onde pedia 3500 dólares pelo carro – com o meu irmão a dizer que nunca ia conseguir nem metade. Dois dias mais tarde vendeu o carro por 3500 dólares. Disse-lhe: “Estás a ver, tens mais capacidades do que o morcão do teu outro filho acha!” O meu pai minou a confiança da minha mãe. Uma mulher com a confiança minada é mais facilmente controlável.
Foi para fugir a tudo isso que se mudou de Nova Iorque para São Francisco?
Sim, foi a minha maneira de fugir às expectativas das pessoas. Cheguei a São Francisco já com uma licenciatura em Religião Comparada, uma mala muito grande e 500 dólares. Primeiro fiquei em Berkeley e comecei a trabalhar como empregado de mesa num restaurante. Adorei sentir a liberdade total. Ganhava o suficiente para comer e pagar a renda. Foi nesta altura que comecei a explorar a minha sexualidade.
Estamos a falar dos anos em que São Francisco era a cidade símbolo da libertação homossexual, com Harvey Milk como figura central.
Sim. Conheci-o mais tarde. Depois de viver em Berkeley um ano mudei-me para o Castro. Vivia, com uma amiga, a um quarteirão da loja dele de máquinas fotográficas. Ele já era vereador na câmara mas quase todas as tardes ia à loja. Era um homem muito carismático, com um sorriso muito bonito. São Francisco foi o primeiro sítio nos EUA onde ser homossexual era um não-assunto.
Foi nesse cenário que teve as primeiras experiências homossexuais?
Absolutamente. Mas não foram muito boas, porque as primeiras experiências são sempre desajeitadas. Ainda assim serviram para perceber que era o caminho certo para mim. É nesta altura que, um dia, entro num café, vejo o Alexandre do outro lado da sala, e me apaixono instantaneamente.
Mas o Alexandre começou por dizer-lhe que não queria ser visto consigo.
Ele desconfiava que eu fosse um marginal, um drogado… Mas depois de passarmos três dias juntos nunca mais nos largámos. Foi uma sorte incrível. A 6 de dezembro fazemos 38 anos juntos.
Quando decide que quer estudar jornalismo?
Em 1982. Até lá os meus trabalhos foram sempre coisas provisórias. Além de empregado de mesa, fui estafeta e secretário da Victoria’s Secret. Foi maravilhoso trabalhar ali, ainda estava lá o Roy [Raymund, fundador da marca]. Já tínhamos um catálogo maravilhoso, cheio de mulheres lindas.
Nunca escrevia, nem para ficar na gaveta?
Escrevia coisas pequenas, críticas de música, porque tinha estudado música clássica. Mas tinha muita vontade de escrever e foi por isso que fui tirar o mestrado em jornalismo, para aprender a escrever. Fui jornalista durante oito anos.
Sobre o que escrevia?
Sobre negócios, ninguém me pagava para escrever sobre cultura. Mas foi muito interessante. Depois fui trabalhar para a comunicação de uma empresa grande. Mas sabia, desde o início, que o jornalismo não era o objetivo. Por isso me demiti.
Lembra-se do que sentiu a primeira vez que se sentou para escrever um romance?
Felizmente comecei com contos, onde o medo não é tão grande. Mas os primeiros não eram bons. Tive de descobrir a minha voz. Só dois anos mais tarde, depois de uns 40 contos, consegui escrever uns inteligentes e sensíveis. Nessa altura achei que podia escrever um romance e comecei a investigar para “O Último Cabalista de Lisboa”.
Que relação tinha, nessa altura, com Lisboa?
Visitava a cidade de dois em dois anos. Mas foi um acaso que Lisboa fosse o palco do meu primeiro romance. Estava a ler sobre iluminuras hebraicas e havia uma escola de iluminura em Lisboa. Foi isso que deu o clique.
O facto de o seu primeiro romance ter sido um sucesso trouxe-lhe muita pressão?
Não porque eu já tinha 40 anos e uma relação estável. Nunca perdi a cabeça a achar que era importante. Hoje em dia os jovens escritores portugueses, ao venderem bem um ou dois romances, acham logo que são génios. Mas eu tive outro problema. Quando temos sucesso com o primeiro livro pensamos que provavelmente isso vai acontecer com os outros livros e no meu caso não aconteceu. “Meia-noite ou o Princípio do Mundo” foi um sucesso em Portugal e Inglaterra, mas um fracasso total nos EUA. Esse fracasso ensinou-me que não há garantias.
Foi depois disso que se mudou para o Porto?
Não, mudei-me antes. Vivi esse fracasso a partir de Portugal. Viemos para Portugal porque São Francisco, nos anos 80, se tornou uma cidade muito deprimida por causa da sida. Não se falava de outra coisa. Toda a gente conhecia alguém que estava doente, a morrer. O clima da cidade mudou de um dia para o outro, de uma cidade muito aberta e com muita luz para uma cidade com a morte a pairar sobre as colinas. Na mesma altura o meu irmão, também homossexual, morreu, também com sida, mas em Nova Iorque. Foi o período mais traumático da minha vida. Não estava a aguentar, estava com uma depressão forte. O Alexandre achou que tínhamos de mudar para um sítio onde se falasse de outras coisas e como tinha recebido um convite para dar aulas no Instituto Biomédico Abel Salazar, mudámo-nos em 1990.
Veio dar aulas para a Escola Superior de Jornalismo. O que recorda dos primeiros tempos no Porto?
Era uma cidade fechada, parada no tempo. Só havia uma loja que vendia jornais estrangeiros. Quando precisava de algo para o meu computador Apple tinha de contactar Amesterdão. Os primeiros três ou quatro anos foram muito difíceis. Muito stress, poucos amigos, não falava a língua. Tinha passado o verão a preparar-me para lecionar três disciplinas, o diretor tinha-me disto que podia dar aulas em inglês. Mas logo na primeira aula vi que ninguém percebia nada do que dizia. Tinha duas alternativas: ou continuava a dar aulas em inglês e ninguém ia perceber nada ou mudava para uma mistura de português e inglês. Fiz um esforço enorme para aprender 40 substantivos, cinco verbos e dez adjetivos. Mas sentia um stress constante porque sabia que as minhas aulas não eram muito boas.
Apesar desse stress, o facto de já não estar rodeado por conversas sobre sida, trouxe-lhe liberdade?
Sim, vir para Portugal salvou-me a vida. Aqui ninguém falava em sida. Podia respirar livremente. Pude despedir-me do meu irmão e ao mesmo tempo ter uma nova aventura. E tinha a relação com o Alexandre, que me ajudou muito.
Nestes anos todos nunca ponderou voltar a viver nos EUA?
Não. Gosto de viver em Portugal. Mas gostava de passar dois ou três meses por ano lá, no deserto, que me descontrai muito. Claro que, com o Alexandre no parlamento, não tenho possibilidade.
Porque foi importante para si casar, ao fim de tantos anos de relação?
Primeiro de tudo por razões legais. Enquanto vivíamos nos EUA a comunidade homossexual tinha um medo terrível porque nos faltava o direito legal de acompanharmos na doença a pessoa que amávamos. Tive amigos que foram expulsos dos hospitais. Essa memória fez com que sempre dissesse que, quando fosse possível, casaria. Em segundo lugar, muita gente sofreu calúnias e agressões físicas para conseguirmos a igualdade. Devia-lhes o meu casamento.
E nunca pensou adotar uma criança?
Houve uma altura em que gostava de o ter feito, mas o Alexandre não queria. Não é um remorso que me dê dor, mas gostaria de ter tido uma criança. Mas não podemos ter tudo na vida.
Consegue imaginar a sua vida sem o Alexandre?
Sim, consigo. Mas a minha vida com ele é muito mais feliz e realizada. Ultimamente tenho pensado muito nisto por causa do romance que estou a escrever. Quando duas pessoas estão espiritual, fisica e legalmente casadas fazem uma viagem juntos. E sejam quais forem os problemas continuam juntas nessa viagem. Até porque a vida é mais difícil quando viajamos sozinhos.