A oficialização da intenção de Manuel Valls concorrer ao Eliseu, nesta segunda-feira, não foi propriamente uma surpresa, principalmente depois de François Hollande ter anunciado que renunciava de concorrer ao cargo que ainda ocupa, por estar “consciente dos riscos de seguir um caminho que não reuniria apoio suficiente”. É precisamente esse apoio que o primeiro-ministro demissionário – aproveitou o anúncio para revelar que irá apresentar amanhã a sua renúncia à liderança do executivo – quer agregar à sua volta e que o levou a apontar à “reconciliação da esquerda”, como única estratégia para derrotar o “retrocesso” proposto pela direita.
A moldura humana colocada estrategicamente atrás de Valls, por pouco não lhe tirava o protagonismo, de tão vasta que era, transbordando para fora do plano televisivo. Mas no fim desta tarde em Evry, nos arredores de Paris, o protagonista foi mesmo o seu antigo presidente da câmara. Consciente de que não estava ali para revelar qualquer segredo guardado a sete chaves, o ainda primeiro-ministro foi direto ao assunto e anunciou aquilo que já toda a gente sabia: “Sou candidato à presidência da República”, proclamou, sem conseguir disfarçar, no entanto, um ou outro sorriso nervoso, perante o aplauso triunfante dos seus companheiros de cenário.
Depois da revelação, vieram os agradecimentos. A François Hollande, pois claro. Por ter colocado o “interesse geral à frente de interesses pessoais”, ao renunciar à reeleição – e ter dado oportunidade a Valls de poder correr ao Eliseu, sem precisar de o enfrentar internamente – e pelo orgulho que teve em trabalhar com ele. ‘Teve’ e não ‘tem’, porque logo de seguida informou os franceses de que iria demitir-se do cargo de primeiro-ministro, que ocupa desde 2014, para se focar exclusivamente nas próximas batalhas.
A começar já pelas eleições primárias do Partido Socialista, marcadas para o final de janeiro. O foco que Valls ofereceu, no seu discurso, à importância de reconciliar a “grande e bela esquerda” não se deve a uma simples questão de calendário. É que todas as sondagens apontam para um confronto final entre o conservador e ultraliberal François Fillon, d’Os Republicanos e a líder da extrema-direita, Marine Le Pen. Perante este cenário, Manuel Valls apenas terá alguma chance de disputar a segunda volta das presidenciais, em maio de 2017 – partindo do pressuposto que as sondagens estão corretas – se conseguir agregar o apoio de praticamente todo o eleitorado da esquerda e de parte do centro moderado.
Não causou surpresa, portanto, que Valls tenha falado na necessidade do combate urgente ao crescimento da direita – que acusou de apresentar políticas do “século XX”, para problemas do “século XXI” – como ponto de partida para o seu longo apelo à “reconciliação da esquerda”.
Divisões dentro e fora
As divisões na esquerda começam logo na corrida à nomeação presidencial pelo Partido Socialista. Arnaud Montebourg e Benoït Hamon são candidatos nas primárias e não podiam ser mais distantes de Valls. Tanto é que foram ambos demitidos do governo por Holande e pelo líder do executivo. Para além daqueles, ainda há que contar com Marié-Noëlle Lenemann e Gérard Filoche, dois candidatos que não se importariam de fazer frente a Valls, numa candidatura única que agregasse o apoio de todos os competidores. Filoche fala mesmo num combate entre “duas esquerdas irreconciliáveis”.
Se Valls vencer as eleições internas – é claramente favorito, diga-se – ainda terá de derrotar a estratégia de Emmanuel Macron, ex-ministro socialista que competirá como independente, e de Jean-Luc Mélenchon, da Front de Gauche – que até foi desafiado pelo economista Thomas Piketty a candidatar-se às primárias socialistas. Toda uma odisseia para conseguir, finalmente, desafiar a direita.
E daí talvez não. Ainda há mais. “[Valls] nunca conseguirá unir a esquerda e, para além disso, não conseguirá sequer apresentar-se como uma cara nova, como alguém desassociado da derrocada socialista”, lembra Philippe Marlière, professor universitário em Londres, citado pela France 24, apontando um outro obstáculo ao sucesso de Valls, talvez mais óbvio. “Ele é o primeiro-ministro de um governo largamente rejeitado pelo público”.