As noites de sexta-feira na Vila Nova de São Bento costumam ser rotineiras. Finda a semana de trabalho, vai-se a casa comer qualquer coisa em família e arranca-se devagarinho pelas ruas estreitas, calcetadas, entre o baixo casario da vila que dista cerca de 25 quilómetros de Serpa, no Baixo Alentejo. Nesta altura do inverno, há quem vá para os cafés aquecer-se. Os cerca de 30 elementos do Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento têm um outro destino: rumam até ao salão emprestado pela junta de freguesia para conversar, beber um copito para aquecer a voz, acalmar o espírito, e cantar. “Há sempre coisas para discutir e agendar”, conta Bento Esperança, um dos elementos do grupo que, apesar de estar com o traje típico domingueiro, que se usava na aldeia no princípio do século XX, trabalha sobretudo no apoio logístico ao grupo, nomeadamente na confeção de petiscos para as ceias e para as saídas.
A rotina da última sexta-feira foi desfeita para fazer uma festa um bocadinho mais aprumada. A reunião aconteceu num espaço emprestado pela Comissão de Festas das Santas Cruzes para o grupo apresentar o seu novo álbum, homónimo – editado dois anos depois de o Cante Alentejano ter sido considerado pela UNESCO Património Mundial e Imaterial da Humanidade. Mesas corridas, paredes caiadas de branco e azul, decoradas com fotografias e cartazes de festas por onde passou o Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento nos últimos 30 anos, que se celebram em 2016. Vamos reconhecendo alguns dos convidados desta noite: Luísa Sobral, que interpretou “A Rosa”; João Monge, que escreveu “A Moda do Meu Chapéu”; Jorge Benvinda, dos Virgem Suta, que cantou “Cantar Até Cair”, e António Zambujo, que acompanhou o rancho em “Trago Alentejo Na Voz”, mas que também foi o produtor executivo do álbum, juntamente com Ricardo Cruz.
Ao balcão, perto de pires de enchidos, garrafas de vinho cuja rolha de cortiça se vai fazendo ouvir a cada abertura, os cantadores, vestidos a rigor, brindam à amizade, ao companheirismo, à longevidade do grupo e, claro, ao novo trabalho do rancho. Lá fora, com a ponta do cigarro em brasa, um dos cantadores acende o rastilho a um foguete que sai disparado em direção ao negro céu da noite alentejana, onde rebenta com estrondo, para gáudio de quem vem matar o vício da nicotina, sem medo do frio do inverno.
Cristóvão Coelho, presidente da Associação do Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento, senta-se à mesa connosco, separados apenas por um prato de queijo, outro de azeitonas e dois copos de vinho. Sorridente, conta-nos que já havia vontade de fazer este CD “há algum tempo”. O objetivo era “preservar as modas alentejanas puras e duras”, mas dar-lhe uma “nova nuance: juntar o rancho com a música”. É aí que Cristóvão Coelho destaca a ajuda de António Zambujo neste projeto: “Foi ele que se pôs à disposição para ajudar o rancho e foi ele que trouxe estes camaradas todos.”
Os “camaradas” de que fala o presidente são os que vão convivendo lá ao balcão, a petiscar qualquer coisa antes do ensopado de galinha na ementa para o jantar. Mas além dos que aqui estão, há mais um par deles que não puderam estar presentes nesta noite: Miguel Araújo, que respondeu afirmativamente ao desafio do rancho em virar moda a sua “Romaria de Santa Eufémia”, mas também os instrumentistas Pedro Mestre, Ana Dias e Marcos Alves, que emprestaram a viola campaniça, a harpa e a percussão em três dos 19 temas do disco.
uma parede de som Esta noite não há palco. Hoje as vozes espalham-se pela sala. De vez em quando, alguém canta mais alto, o que faz com que o grupo se junte, em roda. Só há um, o ponto, que canta mais alto. “Ora viva, ora viva”, saúdam. O rancho, já reunido, connosco ali à volta, responde com vozes graves, como se fosse uma parede de som que nos faz reverberar – da cabeça aos pés. Olham uns para os outros e carregam nas vozes, esticam os lábios, como tenores. “Quando nos faltar a voz, há de haver uma mão cheia a cantar por todos nós, tenho cá na minha ideia”, dizem em “A Moda do Meu Chapéu”.
O Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento nasceu há 30 anos da forma mais espontânea que se pode imaginar: um grupo de amigos que se juntou para cantar. “Eu já ia cantando antes disso. O meu pai era cantador, cantava num outro rancho da Aldeia Nova de São Bento, o etnográfico. E eu acompanhei-o sempre nos treinos, nos ensaios, desde criança”, conta Cristóvão Coelho. A história do presidente é transversal à de uma grande maioria de homens presentes nesta taberna improvisada – dos mais velhos até aos mais novos. “As minhas primeiras memórias do cante são os ensaios com o meu pai. Gostava de ir a todos os treinos, porque era acarinhado pelos cantadores antigos. Depois de sair da tropa, e do aparecimento do rancho, fui convidado para me juntar e cá ando, há tantos anos.”
Também há de ser assim um dia com Daniel. Hoje, com 14 anos, é o elemento mais novo do rancho. Envergonhado e sorridente, com dentes coelho, encolhe-nos os ombros quando lhe perguntamos há quanto tempo se juntou ao grupo. “Não me lembro”, responde. É uma das “mascotes”, que prefere, muitas vezes, juntar-se aqui aos mais velhos em vez de andar a brincar com os da sua idade por Vila Nova de São Bento.
É a integração dos benjamins nos grupos que tem vindo a garantir a indispensável sucessão de gerações no cante alentejano. António Zambujo, de 41 anos, que cresceu a ouvir cantar na Taberna do Cintra, em Beja, recorda-nos que “foi por causa destas músicas que quis ser cantor”. O cante faz parte das suas raízes e já por diversas vezes dividiu o palco com cantares alentejanos, incluindo o Rancho de Cantadores da Aldeia Nova, que participam no tema “O que é feito dela”, do seu disco “Quinto”. “Sempre achei estranho o porquê desta música, tal como a música tradicional portuguesa, não ter mais visibilidade.” “Zambas”, como lhes chamam os amigos aqui em Vila Nova de São Bento, nunca foi uma das figuras de maior destaque na campanha de elevação do cante a Património Mundial e Imaterial da Humanidade. Prefere envolver-se numa vertente mais artística, no trabalho direto no estúdio com os cantores, como fez com este disco, e não no trabalho de escritório. “Cada pessoa tem que fazer o seu trabalho: eu não me senti com capacidade para fazer esse, que é muito importante”, explica. O que lhe interessa é ajudar a dar visibilidade às vozes polifónicas. “Eles têm que mostrar isto! O cante alentejano tem que se mostrar noutros sítios. Há festivais de canto polifónico da Córsega, da Sardenha, da Grécia, da Bulgária. E nunca há corais alentejanos! Eles têm que andar nesses circuitos, nas grandes salas do país para mostrar a grande beleza que é isto.”
Luísa Sobral tentou vestir-se a rigor para a ocasião: calças e casaco pretos, uma camisa branca às bolas pretas. O chapéu de copa alta é-lhe emprestado pelos amigos do rancho com quem já tinha cantado, em 2014, num concerto em Lisboa organizado por Zambujo. “A Rosa” foi composta especialmente para um espetáculo que Luísa fez em Castro Verde. A letra que aparece neste disco surgiu da adaptação que fez para o concerto nos Paços do Concelho: “Achei super bonito, não pela minha canção, mas por cantar com eles. Adorei. Mais tarde convidaram-me para gravar a canção e achei ótima ideia – assim fica para sempre”, sorri. “O que me encanta mais no cante é a potência das vozes: ainda há pouco estava ali no meio deles, que começaram a cantar, e fiquei impressionada! Eles não têm instrução musical, mas é tudo tão genuíno. É uma paixão enorme que têm pelo cante, é algo que os faz feliz.”
para lá das modas O cante nasce de algo muito superior ao simples cantar de modas. Cresce na confiança e no companheirismo que se sente entre os cantadores. É no coletivo que está o poder das vozes, a tal força que até os atacadores das botas faz reverberar. “O convívio é essencial. Nós até costumamos dizer: se for com um copinho isto até vai melhor”, ri-se o Custódio. Nem nas gravações, entre as quatro paredes de um estúdio em Serpa, as coisas foram diferentes. “Nós levávamos sempre qualquer coisa para ajudar ao convívio”, pisca-nos o olho. “No final, ou até meio, tínhamos sempre um bocadinho de convívio para a coisa ir para a frente. Para cantar no rancho só são precisas duas coisas: não desmanchar e fazer boa companhia!”
São tudo características mais do que suficientes para Jorge Benvinda, vocalista e compositor dos Virgem Suta, banda de Beja, ter sentido uma simbiose com o grupo. Encontrou uma outra “Dança de Balcão”, como cantou no primeiro disco da sua banda. Benvinda ofereceu a este disco uma moda de amor da sua autoria, “Cantar até Cair”, “que foi feita para ser cantada de forma circular. Desde que haja um elemento que comece a cantar novamente, dá para cantar 30 minutos de seguida sem cansar. Até se pode tornar viciante”, alerta. Acabaríamos por comprová-lo: “Vivo o meu amor te digo vivo preso num cais, onde a tormenta me consome, sempre que sais”. Foi a música que mais se ouviu depois do jantar. Já depois de comer uma fatia de bolo de aniversário pelos 30 anos do rancho, havia sempre alguém que recomeçava a estalar os dedos, a trazer um lado mais swingado ao rancho.
Enquanto metemos a mochila às costas na altura de voltar a casa, também nós saímos da taberna a assobiar a melodia que já todos cantavam. Bento Esperança, o homem da logística, mostra-se desiludido por termos de ir embora tão cedo. “Então já não ficam para a açorda?”