Quando tomou posse em 2008, Barack Obama definiu a região do Pacífico como o principal pilar estratégico da sua política externa, pelo que, naturalmente, todos os assuntos relacionados com aquela área do globo eram (e ainda são) geridos com pinças, para não ferir as suscetibilidades dos atores em jogo e, particularmente, da poderosa China. Mas o próximo chefe de Estado norte-americano não podia ter rompido de forma mais estridente com o protocolo quando admitiu ter conversado ao telefone com a presidente de Taiwan. Aqui não cabe apenas a etiqueta seguida religiosamente pela administração democrata, mas também o posicionamento de quase 40 anos de relações entre o triângulo Washington-Pequim-Taipé. Não satisfeito com a confusão causada pela chamada telefónica, Donald Trump abriu a sua conta de Twitter e disparou contra a China.
Não é surpresa para ninguém que o discurso do magnata, por vezes contraditório, oferece um incalculável grau de imprevisibilidade àquilo que poderá ser a sua estratégia de política externa. A demora na escolha do próximo secretário de Estado também não facilita o trabalho dos analistas, dos comentadores ou do cidadão comum. Confessar que tinha recebido na sexta-feira um telefonema de Tsai Ing- wen, presidente da ilha Formosa, foi mais um sinal nesse sentido. Os tweets que se seguiram, durante o fim de semana, idem.
“É interessante, os EUA vendem milhares de milhões de dólares em armamento a Taiwan, mas [dizem que] eu não devia atender um telefonema de felicitações”, ironizou Trump através de uma mensagem partilhada naquela rede social, no sábado. No dia seguinte foi ainda mais longe e não se coibiu de atacar os chineses: “A China também nos perguntou se era correto desvalorizar a sua moeda (…), tributar fortemente os nossos produtos que vão para o país deles (…) ou construir um enorme complexo militar no meio do mar do Sul da China? Acho que não!”
Afronta sim, mas brilhante
Se a ideia de Trump foi a de mostrar a Pequim que os “seus EUA” vão assumir uma posição de independência e de força na região, não poderia ter escolhido melhor plano – o Partido Comunista Chinês considera Taiwan parte integrante do país e tem com aquele território uma relação assente num potencial elevado de confronto belicoso, alarmante para a região em termos securitários. Neste sentido, qualquer gesto de mera cortesia com Taipé é entendido como uma afronta à China.
A aproximação histórica entre o gigante asiático e os EUA foi iniciada pelo presidente Nixon em 1972, mas os louros só foram colhidos, em termos formais, em 1978, quando a administração Carter reconheceu Pequim como governo legítimo da China, retirando esse estatuto à ilha Formosa e substituindo uma relação até aí diplomática com Taipé por uma abordagem indefinida e flutuante. É que no pacote das negociações com o gigante chinês vinha a imprescindibilidade de aceitação do princípio de “uma só China”.
Se, por outro lado, o gesto de Trump foi irrefletido, então revela uma aparente falta de entendimento das relações internacionais, segundo a posição assumida por uma grande fatia de especialistas e ex-políticos norte-americanos, bem como pela liderança chinesa, partilhada através dos meios de comunicação que controla. “Independentemente das razões que motivaram os comentários ultrajantes de Trump, parece inevitável que as relações China- EUA vão testemunhar mais problemas nestes primeiros tempos da Casa Branca do que com qualquer outro predecessor”, pode ler-se no editorial do “Global Times”, que ainda acusa o presidente eleito pelos norte-americanos de “falta de experiência diplomática” e adverte que aquele não se pode “isentar das regras do jogo das grandes potências”. “Trump parece querer fazer dos EUA um novo império económico (…) sob a sua liderança, esmagando a ordem económica mundial vigente”, denuncia aquele jornal.
A ideia de que a revelação do magnata sobre a conversa tida com a líder do território em disputa com Pequim é resultado da “falta de experiência diplomática” não podia estar mais errada. Pelo menos foi o que defendeu Michael Pillsbury, antigo conselheiro de Ronald Reagan, na CNN, catalogando Trump como um “génio da estratégia”. “Ele vai ser firme e vai relembrá-los da necessidade da existência de conversas entre Pequim e Washington. Trump quer abanar a China”, explicou.
Na mesma linha, o fundador do China Market Research Group, Shaun Rein, rotula a estratégia de próximo presidente como “brilhante”, uma vez que rompe com a abordagem “ignorada” de Obama. “A China vai agora fazer uma pausa, repensar em todas as suas estratégias e levar Trump a sério”, escreveu Rein num artigo de opinião também publicado pela CNN.
O maior desafio
O Trump nunca falou diretamente sobre Taiwan durante a campanha, pelo que é difícil sustentar a tese de que planeou tudo isto. Mas sobre a China falou e muito. Para o então candidato, Pequim é a grande responsável pelo encerramento de empresas norte-americanas e pelo aumento do desemprego, devido aos baixos custos de mão-de-obra e produção comparados com o praticado nos EUA. Para combater esta realidade prometeu ressuscitar o setor industrial do país, através do aumento das taxas de importação de produtos chineses e de medidas protecionistas. A questão é que a China é o segundo maior parceiro comercial dos americanos, pelo que medidas deste tipo implicariam uma inevitável redução, drástica, do fluxo de trocas entre os dois gigantes.
Que o presidente eleito anda à procura de uma nova abordagem para a China parece óbvio, pesem as contradições do seu discurso. Que essa estratégia pode vir a ser o maior desafio da sua política externa, também faz sentido. Resta é saber se a aproximação a Taiwan faz parte de um plano calculista ou se foi um mero desleixo de um político inexperiente. A partir de 20 de janeiro logo se saberá.