A vereação da Câmara de Lisboa aprovou há seis meses, por unanimidade, a doação de 100 a 200 ossadas não reclamadas do final do século xix e inicio do século xx para efeitos de investigação científica e ensino. O pedido chegou da canadiana Simon Fraser University.
O grupo do PSD na Assembleia Municipal da capital veio ontem contestar a decisão do executivo camarário e exigir “a revogação imediata deste inédito e absurdo protocolo entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Simon Fraser University”.
“Quando nem os mortos se respeitam, não se respeita nada”, escreveram os deputados municipais do PSD em comunicado a que o i teve acesso, assinado pelo presidente do grupo do PSD na Assembleia Municipal de Lisboa.
Os sociais-democratas asseguram que “foi com absoluta estupefação que o PSD/Lisboa tomou conhecimento da existência de um protocolo entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Simon Fraser University, no Canadá, que prevê a ‘doação definitiva’ de esqueletos identificados, mas não reclamados”.
Para os deputados municipais do PSD, “a medida só tem cabimento numa lógica do absurdo”.
“Em primeiro lugar, porque ninguém compreende, que sendo considerado antiético, no Canadá, a utilização de ossadas recentes dos seus cidadãos para investigação, por que razão terá de ser Portugal a cedê-las?”, questionou o grupo do PSD na Assembleia Municipal de Lisboa.
Para o PSD, a decisão dos responsáveis da edilidade “revela um desrespeito inqualificável pela história das pessoas e pelo sentimento da comunidade”.
“As ossadas, ainda que por várias razões mantenham o anonimato, não são anónimas”, assinalaram os sociais-democratas no documento.
E justificaram: “Delas é possível identificar o nome, o sexo, a idade, quem eram os pais, as causas da morte, as doenças que tinham e, nalguns casos, até a profissão ou se tinham filhos, pois nalguns casos há acesso a certidões de óbito, relatórios de autópsia ou fichas clínicas.”
“Como se já não tivesse bastado o abandono e a negligência familiar”, lamentaram os eleitos pelo PSD.
Para os sociais-democratas, “só mesmo por distração é que um representante de uma comunidade, como é o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, pode permitir tal coisa. Ou distração ou falta de vergonha”.
Num tom bastante crítico, os sociais-democratas deixaram, quase em jeito de provocação, uma pergunta a Fernando Medina: “E se fosse um familiar seu Sr. Presidente? Ou um amigo? Também o exportava?”
A indignação política não foi, até ao momento, a única a levantar-se perante a decisão camarária.
Aliás, o assunto foi trazido a público por intervenção de um grupo de 24 cientistas e profissionais da antropologia biológica.
De acordo com a edição de ontem do diário “Público”, o grupo escreveu no passado dia 18 de outubro uma carta a denunciar a situação aos ministros da Cultura e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Castro Mendes e Manuel Heitor, respetivamente.
Em declarações ao jornal, a primeira signatária da missiva, a antropóloga Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra, justificou a iniciativa: “Não podíamos ficar de braços cruzados perante uma situação inédita. Não queremos ser o primeiro país do mundo [nos tempos atuais] a fazer a exportação de esqueletos humanos, ainda para mais identificados.”
A especialista esclareceu ainda que “o Canadá não permite que os esqueletos dos canadianos sejam analisados – não permite fazer coleções de esqueletos [recentes] identificados –, mas vai permitir que os portugueses sejam lá analisados? Nada disto faz grande sentido”.
Ainda de acordo com o diário, o pedido de doação partiu do antropólogo português Hugo Cardoso, atualmente na Simon Fraser University.
Em Portugal não existe legislação específica sobre este assunto.