Nessa noite de Paris que não mais se esquece, os portugueses espalharam-se pelas ruas, pelas avenidas, pelos boulevards; penduraram-se nos candeeiros, entornaram-se nos passeios, choraram de braço dado com a madrugada. Estive lá e vi. E escrevi nestas páginas: «Ficará para sempre na aldeia branca da nossa memória…».
É impossível fugir ao facto, às pessoas que realizaram a proeza, aos que acreditaram mais do que os outros, aos que se recusaram a pensar que era impossível. 2016 é o ano em que Portugal, pela primeira vez, passou o risco negro do fatalismo e conquistou uma grande competição internacional de seleções. É O Acontecimento!
Ninguém ficou alheio. Nem aqueles que se levantam contra o futebol revestidos por grossas armaduras de uma pseudoclivada bacoca, agarrados aos seus ódios mazombos e incapazes de perceber que há uma forma de se gostar da pátria em chuteiras, como diria o grande Nelson Rodrigues, sem que lhes caiam os parentes na lama por ela mal saber ler e escrever. Foi a vitória também do português emigrante e mal tratado, a conquista do orgulho através do jogo pelo qual o mundo se apaixonou há mais de 100 anos.
Portugal chegou a França no meio da descrença. Haveria razões para isso? Talvez… talvez… Há tempo demais que se perdia em promessas por cumprir. Fernando Santos, o selecionador, teimou: «Só regresso a 11 de julho. Com a taça». Alguns riram-se; outros encolheram os ombros. Também somos bons na empáfia, de quando em vez. Mas somos ainda melhores na falta de autoestima. Jogos monótonos, resultados medíocres contra adversários menores, serviram para a chacota de uma imprensa chauvinista como nenhuma outra: a francesa.
Depois houve a sorte, a felicidade, o momento que é preciso saber aproveitar porque é como aquelas ondas do mar que por muito que se repitam não voltam mais. Portugal fugiu às grandes equipas, foi sendo o melhor dos piores, bateu os da sua igualha. Sem brilho? Sim, condescenda-se. Mas com lisura, com limpidez. Nunca perdeu. Por mais que tivesse empatado, nunca perdeu. E não perdendo, foi ganhando. A penáltis se preciso foi.
Em Paris a aventura chegara ao fim. Tudo se predispunha à passadeira azul dos franceses que tinham acabado de bater os alemães. Outra gente, outro futebol. Futebol de grandes, de senhores, sem espaço para um Portugalzinho valente e popular que reclamava um lugar entre a elite. Só havia uma bola e nem sempre os portugueses a quiserem, convencidos dos seus métodos, da sua inacreditável disciplina tão pouco lusitana. A bola não é para querer, é para meter dentro da baliza adversária e manter longe da nossa própria baliza: uma filosofia italiana a vermelho e verde. Funcionou. Mesmo sem Ronaldo (posto fora da final antes dos 25 minutos), mesmo com Eder que marcou o golo de calar a França e enrouquecer as vozes portuguesas. Havia o silêncio da festa que ficava por fazer – e quão prometida ela fora! – e o ruído crescente da festa inesperada e espontânea de gente que corria pelas ruas com bandeiras nas mãos e cachecóis ao pescoço. Só a cor, é curioso, não batia certo. Uma tristeza azul. Vi homens e mulheres a rir e a chorar ao mesmo tempo. Miúdos de olhos esbugalhados e súbitos acessos de uma estranha e entranhada loucura. Havia Portugal nas margens do Sena e era profundamente português.