2017, o Ano da Senhora Europa, de acordo com Helena Ferro Gouveia

Quem tem medo do ano que vem? O mundo. E haverá esperança? Para uns parece que sim, a outros nem por isso. O i convidou dez personalidades portuguesas para escreverem sobre 2017.  Da política interna à arena internacional, da diplomacia à literatura, conhecem o país e o lugar dele no mundo com perspetivas distinta mas que…

Durante uma aula de natação, quando tinha 12 anos, ela ficou parada na extremidade da prancha de mergulho cerca de 45 minutos antes de reunir a coragem necessária para saltar para a piscina. “Tenho coragem no momento certo. Mas preciso de um considerável tempo de preparação e de pesar todos os riscos”. Na escola, na universidade, nem colegas, nem professores, apesar da excepcional inteligência, alguma vez viram na recatada Angela Merkel um potencial de liderança. 

Contrariamente à maioria dos políticos de primeira linha dos democratas-cristãos, CDU, ela não seguiu o caminho tradicional – a filiação na juventude democrata-cristã, envolvimento na política local, construção de redes e contactos. Estava do outro lado do Muro. Como se explica a ascensão do “nada político”, de alguém com um perfil o mais distante possível do clássico, a mulher mais poderosa da Alemanha  e da Europa? Por uma conjugação de qualidades pessoais e de acasos biográficos e de uma constelação histórica ímpar. A sua biografia mostra que sempre jogou muito alto. Para ganhar ou perder tudo. Até hoje ganhou sempre. Como será em 2017?

Aquilo que era visto como uma  hipótese extravagante, o Brexit e a eleição  de Donald Trump, materializou-se. Algumas das poucas certezas que se podem extrair do ano que termina é que o comportamento dos eleitores se tornou imprevisível e as “Fake News”, eufemismo  para mentiras e campanhas de desinformação, se tornaram num elemento não dispiciendo do debate público, influenciando sufrágios.

Consciente deste perigo o ministro do Interior alemão, Thomas de Maiziére, anunciou a criação de um centro de combate a campanhas de desinformação. “A aceitação da era pós-facto seria o equivalente a uma capitulação política“, sublinhou o ministro. Berlim fala abertamente da ameaça que hackers russos, a soldo do Kremlin, possam representar nas legislativas.

Álvaro de Vasconcelos salientou, a propósito dos resultados eleitorais nos Estados Unidos, que “as redes sociais retiraram o monopólio às elites, nomeadamente aos meios de comunicação tradicionais, que acabaram em circuito fechado, a pregar para os seus leitores, desconectados com uma parte significativa da população”. 
A escolha dos americanos não apenas abre uma longa fase de insegurança política e estratégica na Europa, como serve de estimulante para os populismos holandês, francês e alemão.

O calendário europeu em 2017 será marcado por sufrágios em três dos países fundadores do projecto europeu, Alemanha, França, Holanda, a que talvez se venha a juntar outro membro fundador, a Itália.

 “À medida que subiam as águas do populismo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, e na Holanda e na França, a Alemanha converteu-se cada vez mais no centro estável da Europa, e até do ocidente. A Alemanha é o centro geográfico, económico, político e até social, e o centro desse centro é Angela Merkel”, escreveu o historiador britânico e profundo conhecedor da Alemanha Timothy Garton Ash. Resistirá o centro ao teste de esforço eleitoral?

Arrisco uma resposta afirmativa. Angela Merkel será eleita pela quarta vez como chanceler da Alemanha, e provalmente ultrapassará os 14 anos de mandato de Konrad Adenauer e igualará os 16 de Helmut Kohl. Talvez numa nova constelação formando governo com os Verdes e os Democratas Liberais. 

Vista do exterior a campanha eleitoral alemã será dominada pela segurança interna e pela política de refugiados.Vista do interior a estes dois temas soma-se a política de desenvolvimento e o trazer África para a agenda internacional. Em Junho terá lugar  em Berlim uma conferência internacional para debater a parceria com o continente africano e na cimeira do G20, a que a Alemanha preside, África será tema prioritário. Refugiados e África, com a sua múltipla causalidade, não se pensam um sem outro.

Se é verdade que nenhuma nação parece ser imune ao contágio do nacionalismo identitário e ao revivalismo do conservadorismo religioso – olhe-se para  a deriva da Polónia ou da Húngria – e poucas escapam à desinformação sobre os muçulmanos e à colagem abusiva de uma religião ao terrorismo, também é verdade que a Alemanha, por um conjunto de boas razões, é um país “diferente”. 

4. Mais de setenta anos decorridos sobre Auschwitz, o “Lager” que se tornou no símbolo do genocídio dos judeus, a Alemanha fez um longo, intenso, doloroso e exemplar percurso de confronto com o seu passado. Exercício que se foi intensificando à medida que os 12 anos do III Reich se foram distanciando e que se acentuou com a reunificação do país em 1990. 
Nunca nenhuma sociedade documentou de tal forma o seu maior crime colocando no coração da sua capital um extraordinário monumento às vítimas do nacional-socialismo desenhado por Peter Eisenman. O monumento, lancinante de sobriedade, demonstra que “não existe nenhum recalcamento do crime que faz parte da identidade alemã”, na análise de Wolfgang Thierse, ex-presidente do Bundestag.

Esta consciência histórica, e a maturidade da democracia alemã, fez com que as reações ao atentado na Breitscheidplatz, em pleno coração simbólico de Berlim, tenham sido pautadas pela Vernunft, a tão característica razoabilidade alemã. As tentativas do partido de extrema-direita, AfD, Alternativa para a Alemanha, de manipular a opinião pública foram um tiro no próprio pé. 

Existem dois outros bons motivos para poder prever com alguma segurança que a Alemanha não será contagiada pelo populismo. A economia mantém-se sólida e uma imprensa tabloide relativamente sensata.“Ao contrário do Reino Unido, a Alemanha também tem uma imprensa popular relativamente responsável. Apesar de o Bild, o equivalente ao Sun, ter vindo a criticar duramente o euro, o tabloide alemão foi notavelmente contido no tratamento da crise dos refugiados“, nota Timothy Garton Ash.

Jornalista