Durante uma aula de natação, quando tinha 12 anos, ela ficou parada na extremidade da prancha de mergulho cerca de 45 minutos antes de reunir a coragem necessária para saltar para a piscina. “Tenho coragem no momento certo. Mas preciso de um considerável tempo de preparação e de pesar todos os riscos”. Na escola, na universidade, nem colegas, nem professores, apesar da excepcional inteligência, alguma vez viram na recatada Angela Merkel um potencial de liderança.
Contrariamente à maioria dos políticos de primeira linha dos democratas-cristãos, CDU, ela não seguiu o caminho tradicional – a filiação na juventude democrata-cristã, envolvimento na política local, construção de redes e contactos. Estava do outro lado do Muro. Como se explica a ascensão do “nada político”, de alguém com um perfil o mais distante possível do clássico, a mulher mais poderosa da Alemanha e da Europa? Por uma conjugação de qualidades pessoais e de acasos biográficos e de uma constelação histórica ímpar. A sua biografia mostra que sempre jogou muito alto. Para ganhar ou perder tudo. Até hoje ganhou sempre. Como será em 2017?
Aquilo que era visto como uma hipótese extravagante, o Brexit e a eleição de Donald Trump, materializou-se. Algumas das poucas certezas que se podem extrair do ano que termina é que o comportamento dos eleitores se tornou imprevisível e as “Fake News”, eufemismo para mentiras e campanhas de desinformação, se tornaram num elemento não dispiciendo do debate público, influenciando sufrágios.
Consciente deste perigo o ministro do Interior alemão, Thomas de Maiziére, anunciou a criação de um centro de combate a campanhas de desinformação. “A aceitação da era pós-facto seria o equivalente a uma capitulação política“, sublinhou o ministro. Berlim fala abertamente da ameaça que hackers russos, a soldo do Kremlin, possam representar nas legislativas.
Álvaro de Vasconcelos salientou, a propósito dos resultados eleitorais nos Estados Unidos, que “as redes sociais retiraram o monopólio às elites, nomeadamente aos meios de comunicação tradicionais, que acabaram em circuito fechado, a pregar para os seus leitores, desconectados com uma parte significativa da população”.
A escolha dos americanos não apenas abre uma longa fase de insegurança política e estratégica na Europa, como serve de estimulante para os populismos holandês, francês e alemão.
O calendário europeu em 2017 será marcado por sufrágios em três dos países fundadores do projecto europeu, Alemanha, França, Holanda, a que talvez se venha a juntar outro membro fundador, a Itália.
“À medida que subiam as águas do populismo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, e na Holanda e na França, a Alemanha converteu-se cada vez mais no centro estável da Europa, e até do ocidente. A Alemanha é o centro geográfico, económico, político e até social, e o centro desse centro é Angela Merkel”, escreveu o historiador britânico e profundo conhecedor da Alemanha Timothy Garton Ash. Resistirá o centro ao teste de esforço eleitoral?
Arrisco uma resposta afirmativa. Angela Merkel será eleita pela quarta vez como chanceler da Alemanha, e provalmente ultrapassará os 14 anos de mandato de Konrad Adenauer e igualará os 16 de Helmut Kohl. Talvez numa nova constelação formando governo com os Verdes e os Democratas Liberais.
Vista do exterior a campanha eleitoral alemã será dominada pela segurança interna e pela política de refugiados.Vista do interior a estes dois temas soma-se a política de desenvolvimento e o trazer África para a agenda internacional. Em Junho terá lugar em Berlim uma conferência internacional para debater a parceria com o continente africano e na cimeira do G20, a que a Alemanha preside, África será tema prioritário. Refugiados e África, com a sua múltipla causalidade, não se pensam um sem outro.
Se é verdade que nenhuma nação parece ser imune ao contágio do nacionalismo identitário e ao revivalismo do conservadorismo religioso – olhe-se para a deriva da Polónia ou da Húngria – e poucas escapam à desinformação sobre os muçulmanos e à colagem abusiva de uma religião ao terrorismo, também é verdade que a Alemanha, por um conjunto de boas razões, é um país “diferente”.
4. Mais de setenta anos decorridos sobre Auschwitz, o “Lager” que se tornou no símbolo do genocídio dos judeus, a Alemanha fez um longo, intenso, doloroso e exemplar percurso de confronto com o seu passado. Exercício que se foi intensificando à medida que os 12 anos do III Reich se foram distanciando e que se acentuou com a reunificação do país em 1990.
Nunca nenhuma sociedade documentou de tal forma o seu maior crime colocando no coração da sua capital um extraordinário monumento às vítimas do nacional-socialismo desenhado por Peter Eisenman. O monumento, lancinante de sobriedade, demonstra que “não existe nenhum recalcamento do crime que faz parte da identidade alemã”, na análise de Wolfgang Thierse, ex-presidente do Bundestag.
Esta consciência histórica, e a maturidade da democracia alemã, fez com que as reações ao atentado na Breitscheidplatz, em pleno coração simbólico de Berlim, tenham sido pautadas pela Vernunft, a tão característica razoabilidade alemã. As tentativas do partido de extrema-direita, AfD, Alternativa para a Alemanha, de manipular a opinião pública foram um tiro no próprio pé.
Existem dois outros bons motivos para poder prever com alguma segurança que a Alemanha não será contagiada pelo populismo. A economia mantém-se sólida e uma imprensa tabloide relativamente sensata.“Ao contrário do Reino Unido, a Alemanha também tem uma imprensa popular relativamente responsável. Apesar de o Bild, o equivalente ao Sun, ter vindo a criticar duramente o euro, o tabloide alemão foi notavelmente contido no tratamento da crise dos refugiados“, nota Timothy Garton Ash.
Jornalista