O velho sonho do presidente turco de criar uma espécie de sultanato dos tempos modernos que reserve para si o lugar de líder indisputado está finalmente ao seu alcance. Recep Tayyip Erdogan e o seu partido manobraram com destreza a recém-adquirida fama de guardiões da ordem para chegarem a acordo com a oposição ultranacionalista e religiosa e atingirem votos suficientes para aprovar uma reforma constitucional que pretende fazer da Turquia um país de regime presidencial. E não se trata apenas de uma mudança cosmética – não estivesse Erdogan há anos em deriva autocrática. “É uma transformação histórica, a mais radical desde a mudança do sultanato para a República, em 1923, e do regime de partido único para a democracia, em 1947”, argumenta o diretor do diário turco “Hürriyet”, Murat Yetkin.
O parlamento turco aprovou ontem o início da discussão da reforma constitucional, que o partido de Erdogan, o Partido da Justiça e Desenvolvimento, ou AKP, quer ver concluída em apenas duas semanas. A aguentar-se a aliança com a oposição nacionalista e a ser aprovada a atual proposta constitucional, o presidente substitui o primeiro-ministro como chefe de governo e passa a ter poder para governar por decreto-lei, designar ministros sem autorização parlamentar e apontar grande parte dos magistrados dos maiores tribunais e órgãos judiciais – incluindo o Constitucional e o Supremo. Erdogan poderá também governar até 2029 e retomar o posto de líder do AKP – o que, na prática, já acontece. Para ser destituído são precisos os votos de três quartos dos deputados.
Para críticos e opositores, não passa do finalizar de uma tomada de poder encapotada por alguém que foi 11 anos primeiro-ministro e controla ainda o governo a partir dos bastidores, para além de tribunais, órgãos de comunicação e forças de segurança. Nas palavras de uma deputada do maior partido da oposição, o MHP: “Acaba-se a separação de poderes. O presidente assumirá todas as competências executivas e parte das que estão hoje com o legislativo, retirando-se da sua condição de supervisor do trabalho do governo e fiscalizador do poder judicial”, afirma Candan Yüceer ao “El País”. Para governo e deputados islamistas, a mudança de regime previne a paralisação institucional e a duplicação de poder. “Apenas é necessária uma autoridade no ramo executivo”, dizia ontem o primeiro-ministro, Binali Yildirim, o homem que Erdogan escolheu a dedo para suceder no último ano ao europeísta Ahmet Davutoglu. “Dois capitães afundam o navio. Só é necessário um.”
Golpe e contragolpe
Os aliados de Erdogan defendem-se dizendo que as alterações têm de ser aprovadas em referendo, o que entrega aos eleitores a responsabilidade de decidir os destinos do país. As ruas, porém, já não são as que eram há dois anos, quando a população, muita dela descontente com os projetos de poder de Erdogan, recusou uma nova maioria ao AKP. Era junho de 2015 e os turcos pareciam, por esses dias, afastar de vez os sonhos presidencialistas do seu homem forte.
Não aconteceu. À derrota parlamentar, Erdogan respondeu recusando coligações de governo. Reacendeu a guerra civil com os separatistas curdos no sudeste, excitou a base rural e religiosa e repetiu a ida às urnas meses mais tarde. Recuperou uma maioria mais folgada do que o esperado. O golpe falhado do último verão fez o resto: levou até a oposição mais combativa para o lado do presidente, que desde então mandou prender qualquer coisa como 120 mil opositores, criou um clima de censura estatal e poliu o discurso da defesa da ordem e da revitalização do poder mundial turco. A popularidade de Erdogan saltou para a ordem dos 70%. O referendo, indicam algumas sondagens, vencerá com 60%.
Riscos presidenciais
Mas o perigo espreita à esquina. A grande sequência de ataques terroristas está a pôr à vista todos os erros de estratégia do presidente. Erdogan preferiu reacender o conflito curdo para fins eleitorais e bombardear violentamente o principal grupo separatista, que agora retribui com atentados que fazem lembrar os piores anos da guerra civil. Do outro lado estão as matanças do Estado Islâmico, também elas ligadas às políticas de Erdogan, que preferiu apostar tudo na queda de Bashar al-Assad e no combate aos curdos sírios, não só ignorando a ascensão jihadista como também atirando dinheiro e armas para a oposição mais radical.
A oposição turca promete fazer tudo para atrasar o voto parlamentar, na esperança de que os erros de Erdogan se tornem evidentes e as ruas se voltem de novo contra ele. Mesmo que por estes dias não pareça haver espaço para protestos como os que ocorreram há quase quatro anos, em Gezi. O debate está simultaneamente amordaçado e radicalizado, argumenta ao “Guardian” Ayse Oncu, professor na Universidade Sabanci, em Istambul. Isto é: amordaçado na política, radicalizado na religião. “A Turquia já não pensa em termos de esquerda ou direita, mas de secularista e islamista”, diz.