Obama é o mesmo em campanha e na presidência. Trump, contra quem argumenta que o cargo amestra o homem, também o será. Demonstram-no o discurso de despedida de um e a primeira conferência de imprensa em meses do outro. Se Obama falou uma última vez sobre a sua interpretação do excecionalismo americano – uma nação única no seu desígnio de liderança democrática, sim, mas também imperfeita e em construção –, Trump escolheu falar sobre a sua própria condição excecional, a do homem-providência, o único capaz de devolver o país à grandeza passada, que pessoas como o seu antecessor denegriram ao ponto da traição.
As duas aparições, separadas por um punhado de horas, deram a ver com nitidez o fosso que os separa no estilo e na controvérsia: pouco antes de Obama subir ao palco em Chicago, a imprensa norte-americana dava conta de um conjunto de alegações não provadas segundo as quais agentes russos têm em mãos material comprometedor sobre Donald Trump, um género de polémica de que nunca se ouviu falar em oito anos de presidência do seu antecessor, mas que há muito se tornou comum com o magnata.
A aparição de Trump começou nesse ponto habitual: na polémica. Pela primeira vez desde julho, Trump deu uma conferência de imprensa. Horas antes do seu início pensava-se que as perguntas iriam rondar sobretudo em torno do relatório elaborado pelas agências de espionagem americanas, que acusam o governo russo de ter orquestrado uma campanha de pirataria informática e disseminação de propaganda e notícias falsas para ajudar Donald Trump e prejudicar a sua rival, Hillary Clinton.
Falou-se, de facto, sobre o relatório, mas de uma sua parte confidencial, divulgada na noite de terça pela CNN e publicada na íntegra por outros órgãos, contendo informações não confirmadas de que o Kremlin tentou subornar o próximo presidente com contratos de imobiliário, que o informou sobre a campanha, que roubou milhares de emails à campanha democrática e os publicou através da WikiLeaks, e que até haveria filmes sexuais em que entram Trump e prostitutas russas – rumores que circulam há meses por alguns jornalistas e políticos, mas que nenhuma investigação conseguiu provar, como se escrevia ontem no “New York Times”.
A sua equipa já o tinha negado, assim como o próprio governo russo. Mas Trump teve mesmo assim de responder a perguntas sobre o tema. “Acho que foi uma desgraça, uma desgraça que as agências de espionagem permitissem que informação desse tipo pudesse chegar ao público”, lançou, recusando-se a aceitar perguntas vindas de um repórter da CNN – deu-se aí uma disputa acesa entre o presidente eleito e o jornalista, Jim Acosta: o primeiro recusava-se a aceitar perguntas e o segundo não queria deixar de as fazer.
Tudo negado, Trump elogia as empresas que decidiram, nos últimos dias, pôr as suas fábricas nos Estados Unidos – deixa uma leve ameaça às outras –, afirma que os dois filhos controlarão a sua “fantástica” empresa – contra os pedidos do próprio Gabinete de Ética Governamental –, diz pela primeira vez que “acha” que foram os russos os autores das operações de pirataria informática – mas diz também que a amizade de Putin é uma “mais-valia” – e anuncia que vai apresentar em breve uma alternativa ao programa de saúde de Obama – desgraça que deixará “implodir” em breve. Tudo esquivando-se à maioria das perguntas e regressando aos solilóquios que o caracterizaram nos debates, quase sempre circulares e imprecisos.
Sobre a sua conferência de imprensa pairavam ainda as palavras do homem que substituirá. Obama não o nomeou na noite de terça, defendeu a transição pacífica, mas, como notava ontem o jornalista Alex Seitz-Wald, também mencionou 20 vezes a palavra “democracia”, muitas mais do que os seus antecessores na despedida – Truman fê-lo uma vez, como Eisenhower; Carter, três vezes; Reagan, uma; Clinton, nenhuma; e George W. Bush, quatro. Também Trump pairou sobre o seu discurso, ele que pode reverter quase toda a herança de Obama. Nas suas palavras: “Sim, o nosso progresso tem sido desequilibrado.
O caminho da democracia sempre foi difícil, contencioso e, por vezes, sangrento. Por cada dois passos em diante, muitas vezes parece que damos um passo atrás. Mas o grande arco da América sempre descreveu um movimento de progresso, da ampliação constante das convicções que nos fundaram de maneira a abraçarem todos, não apenas alguns.”