Na escola, um dos meninos da turma chorava porque tinha visto os pais discutir. A professora, numa tentativa de o acalmar, garante que é normal e que de certeza já tinha acontecido a todos os colegas da sala. A todos menos a um. Gonçalo levanta o dedo e responde. “Mas eu nunca vi os meus pais zangados.” Nem mesmo quando viviam na mesma casa sem nunca partilharem cama ou quando, já separados, cada um assumiu novas relações.
Catarina e Diogo não fazem magia, mas há quem lhes peça alguns dos seus truques para que se mantenham melhores amigos depois de uma separação. “Já éramos amigos antes de sermos namorados, não há por que mudar isso”, resume Catarina, de forma prática.
Os pais de ambos eram também eles melhores amigos e, quando o pai de Catarina morreu, foi Diogo o seu suporte. “De tal maneira foi que acabei por engravidar”, brinca. Com 24 anos e Diogo com apenas 19, a gravidez foi bem-vinda, mas ambos tinham noção de que eram muito novos e que as coisas podiam correr mal. Foi por isso que, ainda com o Gonçalo na barriga, tiveram “a” conversa. “Como filho de pais separados, o Diogo disse-me logo que não queria ser pai de fim de semana”. Vai daí que tenham decidido viver juntos, mesmo que nunca tenham partilhado cama.
Foi como amigos que começaram e é como melhores amigos que hoje continuam. “Falamos todos os dias ao telefone e nem sempre tem a ver com o Gonçalo”, garante. As relações seguintes souberam aceitar esta condição e nenhuma tentou sequer impor novas regras. Aliás, quando Catarina engravidou uma segunda vez, foi a Diogo que recorreu nas horas de aperto. “Quando me rebentaram as águas, liguei ao Diogo para ficar com o Gonçalo e, pouco depois, ele já estava na maternidade comigo”. E assim continua até aos dias de hoje. “Também já aconteceu ter que ser eu a ficar com o filho do Diogo em alturas que ele e a mulher não podia”.
Pedro, o atual marido de Catarina, levou com a informação de chofre e, apesar do choque inicial do “espera lá, como assim melhores amigos?”, hoje tudo acontece com naturalidade. É por isso que nos aniversários, principalmente do Afonso, a festa conta com o pai, a mãe, o irmão Gonçalo, o Diogo e respetiva família – “a mãe do Diogo trata todos os meus filhos por netos”, conta Catarina – o Pedro e a filha de ambos, Maria Luísa. “Parece confuso e confesso que a primeira vez que nos juntámos todos houve alguma tensão, mas ultrapassou-se e hoje é tudo normal”, garante.
Amizade em construção Se com o pai do primeiro filho a amizade ultrapassou a separação e as relações que os dois tiveram depois, no caso do Rui, pai do Afonso, as coisas não funcionaram de forma tão fluida. “Neste caso não foi uma amizade natural, teve que ser uma relação construída”. E é por isso que Catarina garante que casos como o dela podiam ser mais comuns. “Hoje em dia temos uma relação serena mas porque batalhamos para que isso acontecesse”, explica, “quando há filhos a relação é eterna e, por isso, convém que seja pacífica”.
Justificações como as de Catarina são comuns na hora de perceber como é que uma relação continua depois de um divórcio. Os filhos estão em primeiro lugar para o casal, especialmente para aqueles que querem evitar alterações profundas no seu bem-estar.
“Fico impressionada quando ouço casos de pais que usam os filhos como arma depois de um divórcio”, confessa Fátima. A sua preocupação foi exatamente a oposta: fazer com que o filho Hugo sentisse o menos possível a separação dos pais. E é por isso que ainda hoje mantém uma relação de amizade com Zé, com quem foi casada 14 anos.
Na sala de estar da família Carola há espaço para o ex-casal e para Paula, a atual mulher de Zé. Bem apertados, cabem ainda o Hugo e a namorada, Teresa, a filha de Zé e Paula, e, em dias de festa, o marido de Fátima, respetivos filhos e as avós dos dois lados. “Parece confuso, eu sei, mas é muito natural”, garante. A prova é que o trio – Zé, Fátima e Paula – vão atropelando histórias destes últimos vinte anos em comum. Para por ordem nos Carola, o melhor é começar pelo início.
Fátima e Zé casaram muito novos, com 19 e 20 anos. “Era a única forma da minha mãe me deixar ir ao cinema ou à discoteca”, justifica Fátima. “Não que não gostássemos muito um do outro”, acrescenta Zé, “mas o casamento nessa altura era visto como uma espécie de libertação”. Além disso, tinha sido diagnosticado um cancro à mãe de Fátima, que lhe dava uma esperança de vida muito curta e, para assegurar que estaria presente, decidiram apressar o casamento. Nota de rodapé: a mãe de Fátima ainda hoje está viva.
Pouco depois nasce o Hugo, hoje com 38 anos, mas que Zé pouco acompanhou enquanto pequeno. “O meu trabalho obrigava-me a estar muito tempo fora, tenho noção que fui um pai muito ausente”, assume. Fátima interrompe: “Basicamente vinhas a casa lavar roupa e fazer uma mala nova”.
Rapidamente perceberam que a distância foi esfriando o amor e que, entre os dois, já não havia mais do que uma amizade e nem essa imediata. “Acho que faz parte da vida de um casal que, depois de uma separação, vivam um período de afastamento”, constata Zé. Mesmo assim, esse tempo afastados foi curto, até porque ver o Hugo feliz falava mais alto. “Ele foi o agregador desta relação, isso sem dúvida”, garante Fátima, que duvida que hoje mantivesse uma amizade com Zé se do casamento não tivesse resultado este filho.
Dois anos depois Zé voltou a casar. “Eu não esperei tanto”, brinca Fátima que, apesar de não ter casado, vive com Carlos desde então. Paula, que apanhou este comboio em andamento, não estranhou a relação do marido com a ex-mulher. “Tudo funcionava bem antes de eu aparecer na história, não era eu que ia estragar tudo, até porque não vim tirar nada a ninguém”, esclarece. Fátima até já lhe foi útil em algumas situações, admite. “Já me ficou com a minha filha quando eu não podia e a Teresa até já chegou a ir de férias com a Fátima. Não vejo mal nenhum”. Fátima lembra-se de outra história. “E aquela vez que eu fiquei sozinha no Algarve e acabei por ir ter convosco a Milfontes? Fomos à praia, jantamos, tudo normal”.
Apesar da naturalidade com que toda a família encara este cruzamento de relações, não deixam de ouvir, ainda hoje, alguns comentários sobre aquilo que para muitos ainda é invulgar. “Ui isso é constante”, garante Paula, “ainda hoje me perguntam ‘Então tu dás-te assim tão bem com a ex do teu marido’. Eu só respondo: ‘Dou, e então?”.
Filhos de pais amigos Aos 14 anos, ouvir da boca dos pais que o divórcio é inevitável não é fácil. Mesmo quando se está à espera. “Eu já sabia que as coisas não andavam bem há algum tempo, mas é daquelas conversas que não queres ter”. Mas a conversa aconteceu e, nesse dia, Maria João e Ana Rita ficaram a saber que o pai ia sair de casa, “mas que tudo ia correr bem”. Desta vez, os clichés das conversas sérias foram muito além disso e a verdade é que tudo correu mesmo bem. “É óbvio que logo a seguir à separação houve um período mais frio, mais distante entre os dois”, conta Maria. Mesmo assim, não havia guarda partilhada nem dias fixos para estar com mãe e pai. “Estávamos com quem queríamos às horas e dias que queríamos”, conta.
O afastamento inicial desapareceu sem que ninguém desse conta. “Nem me consigo lembrar do momento. Só sei que de repente os meus pais voltaram a ser o que sempre foram: melhores amigos”. Maria e a irmã não se lembram de Natal ou aniversário sem a presença do pai. “Mas nem é preciso ser dia de festa”, garante. Para as duas, é normal ter o pai a jantar lá em casa, por exemplo, mesmo quando as duas não estão. Aliás, durante anos, tinham um café religiosamente marcado para de manhã bem cedo, seguido da boleia que o pai dava à mãe até ao trabalho. “Só nos apercebemos de como isto é invulgar quando, ainda hoje, recebo mensagens dos meus amigos a avisar que viram os meus pais a passear juntos na rua”, ironiza.
Novas famílias Lidar com papéis de divórcio, guardas de fim de semana, almoço no pai, jantar na mãe, malas e mochilas para todo o lado é um cenário que nenhuma família imagina na hora de casar, mas que acaba por ser tornar inevitável para muitas. Recorde-se que Portugal está no topo dos países com mais divórcios da Europa: por cada 100 casamentos que são registados em Portugal há 70 pedidos de divórcio.
Daí que seja cada vez mais comuns que os novos casais sejam ambos filhos de pais separados e habituados a uma família alargada. O que não é tão comum é encontrar debaixo do mesmo teto dois filhos de ex-casais que se dão tão bem que, quando estão todos juntos, levam as pessoas na rua a questionar quem é filho, pai, irmão e tio de quem. “Aconteceu mesmo”, garante Filipe, “uma vez na praia e perante a confusão de relações entre nós vieram pedir para esclarecermos quem era quem”. Filipe acha mesmo que devia andar com uma árvore genealógica no bolso, “ao estilo Cem Anos de Solidão”, para responder às curiosidades que a sua família costuma despertar.
Vamos por passos: os pais de Filipe separaram-se quando ele tinha cinco anos. Depois de um período afastados, fizeram um esforço – “sobre o qual só agora, em adulto, me apercebo” – para retomar a relação de amizade. Voltaram a casar e, num espaço de dois anos, Filipe ganhou dois irmãos, um de cada lado da família. “O mais engraçado é que os meus irmãos, apesar de não terem qualquer relação de sangue, sempre se deram como irmãos, assim como com o primeiro filho do meu padrasto, que é claramente um de nós”. Confuso? “Para mim é normal”, garante. Assim como é normal que o pai e o padrasto vão à bola juntos há mais de trinta anos e que assim que o Sporting deu hipótese de comprar lugares para os próximos vinte anos, tenham assegurado dois, ao lado um do outro, claro.
No dia em que o filho de Filipe nasceu, eram mais de vinte pessoas na maternidade. Sim, porque a namorada Joana também consegue juntar no agregado familiar, irmãos de outros casamentos e pais que, apesar de separados há mais de trinta anos, continuam a ser amigos. “Mas nem sempre foi assim”, garante, ao lembrar os primeiros anos em que teve que lidar com um pai e uma mãe que só falavam quando necessário. Até ao dia que nasceu o primeiro neto do pai – que tem dois filhos mais velhos de um anterior casamento – e é organizada uma mega festa de comemoração. “’Diz à tua mãe para vir também’, disse-me. Eu até tive que ligar de volta a perguntar se tinha percebido bem”. O que é certo é que o encontro serviu de quebra-gelo para os anos seguintes, sempre passados em aniversários, natais e férias em conjunto. Não há, aliás, Verão em que a ilha da Armona não seja invadida pelo clã. “Entre família e amigos, temos que alugar sempre 15 casas” e o pai e a mãe têm lugar cativo, claro. “Cada um na sua”, faz questão de esclarecer. Amigos, mas não tanto.