Em 1966, Martin Scorsese tinha 24 anos e estava longe de imaginar que acabava de ser publicado o livro “Silêncio”, de Shusaku Endo, e em que se basearia o filme que esperou “uma vida inteira para fazer”. A obra só seria descoberta pelo realizador anos mais tarde, em 1989. À data, Andrew Garfield tinha seis anos e os “filmes eram a sua religião”, contou recentemente à revista “America, the National Catholic Review”. E Jorge Mario Bergoglio era já um padre jesuíta que tinha sido, durante o começo dessa década, reitor da Faculdade de Filosofia e Teologia de San Miguel.
A teia cronológica traz-nos a 2017, o ano em chega às salas de cinema a história dos padres jesuítas portugueses que partiram para o Japão, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), com a missão de perceber se o seu superior tinha cometido apostasia – que é como quem diz, renegado Deus publicamente. Nas terras nipónicas sob o regime Xogunato Tokugawa, que baniu o catolicismo e quase todo o contacto com o estrangeiro – especialmente com os portugueses -, os dois jovens religiosos testemunham a perseguição e o martírio dos japoneses cristãos.
“Silêncio” chega às salas portuguesas na próxima quinta-feira e tem uma carga dramática pesada, para crentes e não crentes. Levanta questões sobre a força de vontade dos homens quando acreditam verdadeiramente em algo e faz refletir sobre o silêncio do divino e as formas de o ultrapassar. Scorsese fez questão de mostrar o filme em primeira mão ao Papa Francisco.
Mas esta história que se tornou num projeto de vida para o realizador e foi escrita pelo japonês Endo, é na realidade um aglomerado de muitas escolhas de vida que começam muitos séculos antes, ainda antes de chegarmos ao Japão. Em 1491, ano em nasce no País Basco o filho mais novo de uma família nobre: Inigo Lopez de Loyola, mais tarde conhecido por Inácio. Cresceu com todos os confortos reservados aos nobres. Mas aos 30 anos foi ferido de morte numa batalha em Pamplona e, a 24 de junho de 1521, julgam que lhe estão a traçar o destino: Inácio, moribundo, recebe os últimos sacramentos. O ritual funciona de maneira oposta e, como que por milagre, o guerreiro começa a recuperar dois dias depois. Durante esse tempo, converte-se. Descreve uma visão com Nossa Senhora e o menino Jesus e começa a sonhar não com guerras ou luxos, mas com a santidade. Livra-se das roupas de cavaleiro e passa a usar um “humilde traje de peregrino”. Nos anos seguintes, dedica-se à peregrinação, aos estudos e em 1540 funda a Companhia de Jesus.
Quando morreu, em 1556, a ordem contava com mais de mil membros em 100 casas e 16 províncias, apenas 16 anos após a sua fundação. Inácio de Loiola foi beatificado por Paulo VI em 1609 e canonizado por outro papa, Gregório XV, em 1622. Ironicamente, seria um papa com o nome Clemente (o XIV) a ordenar a supressão da Companhia de Jesus, em 1773. Expulsos de muitos países, entre os quais Portugal, os jesuítas encontraram reduto na Rússia e nos séculos seguintes o seu caminho vai oscilando com a maré das revoluções. Mas nunca desapareceram e continuam a surgir gerações sucessivas destes padres missionários que procuram ver Deus em todas as pequeninas coisas. São atualmente a ordem religiosa com mais membros do mundo, e, na cadeira mais alta da igreja que os afastou no passado, senta-se desde 2013 – e pela primeira vez – um jesuíta: Jorge Mario Bergoglio, Papa Francisco.