Brexit. Já ninguém pode acusar May de não ter plano

Primeira-ministra britânica apresentou (finalmente) uma estratégia para a saída do Reino Unido da União Europeia. Abandono do mercado único e promessa de votação do acordo no parlamento são medidas para acalmar as hostes

A nuvem negra de incerteza que teima em pairar sobre o Reino Unido desde que, no dia 23 de junho de 2016, 51,9% dos britânicos decidiram dizer sim ao Brexit continuará a pairar por lá, seguramente, durante os próximos meses (ou anos). Quando Theresa May se dirigiu ao país e à Europa no final da manhã de ontem, ninguém esperava que trouxesse debaixo do braço uma estratégia engenhosa para a saída do país da União Europeia, e muito menos um programa suficientemente robusto que pudesse empurrar as nuvens para fora das ilhas Britânicas. Mas quando, hoje de manhã, os britânicos – os “brexiteers” e os outros – olharem para as primeiras páginas dos jornais, já não poderão bradar aos céus que o governo não tem um plano, como tantas vezes fizeram durante os últimos seis meses.

É isso mesmo, um plano. Somando todas as críticas que foram feitas ao executivo conservador desde que conhecidos os resultados do referendo, dificilmente chegaremos a outra conclusão que não seja a de que a alegada ausência de um plano concreto para o abandono pelo Reino Unido da União punha em causa toda e qualquer legitimidade política de May.

Foi precisamente para acabar com essa dúvida insustentável que a sucessora de David Cameron subiu ao palanque da Lancaster House, em Londres, para apresentar uma estratégia que, ironicamente, até já tinha sido noticiada ao pormenor, às primeiras horas da manhã, por praticamente toda a comunicação social britânica. Um simples detalhe, terá pensado certamente Theresa May, decidida a tirar de cima dos ombros o peso da ausência de planos, independentemente da supressão do efeito de surpresa.

Tratou-se, portanto, de uma confirmação daquilo que já todos sabiam: o governo vai mesmo optar por um “hard Brexit”. Significa isto que o executivo procurará levar para a frente um programa político que garanta que o Reino Unido não fica “nem meio dentro nem meio fora” da UE, mas totalmente livre para se transformar no “melhor amigo da UE” e na “nação comercial global” de outros tempos.

Amigos, amigos, liberdades à parte

May iniciou, então, o seu discurso com uma mensagem otimista destinada aos britânicos e aos restantes 27 membros da União, fazendo questão de esclarecer que o resultado do referendo “não significa que o Reino Unido se vá retirar do mundo” nem que os britânicos “rejeitam os valores da UE”. “Vamos abandonar a União Europeia, mas não vamos abandonar a Europa”, afiançou.

A primeira-ministra divulgou uma lista com as 12 grandes prioridades do governo rumo à saída e o grande destaque vai para a confirmação da intenção de abandono total do mercado único europeu. May justificou a decisão com a renúncia britânica às “quatro liberdades” – circulação de bens, capital, serviços e pessoas – a ele associadas, uma realidade que torna impossível a convivência comum de medidas de controlo da imigração com a pretensão da não aplicação das leis oriundas do Tribunal de Justiça da UE aos britânicos. Quanto à vertente estritamente económica prometeu alcançar um novo acordo de comércio, “arrojado e ambicioso”, que permita ao Reino Unido “o melhor acesso possível” ao mercado único. Com a rejeição daquele, lembrou a líder do governo, “acabam os dias das grandes contribuições” dos britânicos para o orçamento comunitário em matéria comercial.

Dentro da lista de mandamentos revelada por May cabem, então, o controlo da imigração “vinda da UE”, a procura de uma “solução prática” para a gestão da fronteira terrestre com a República da Irlanda, a manutenção da cooperação em matéria de defesa e combate ao terrorismo ou a “garantia dos direitos dos trabalhadores” europeus residentes no Reino Unido e da população britânica espalhada pela União.

À espera do tribunal

Numa altura em que ainda se espera ansiosamente pelas conclusões da apreciação do recurso interposto pelo governo ao Supremo Tribunal – deverão ser conhecidas no final deste mês – no âmbito da decisão do Tribunal Superior, de novembro de 2016, que decretou o impedimento do executivo para desencadear unilateralmente o processo de saída sem a participação do parlamento britânico, May anunciou que o acordo final que o governo alcançar com a União será apresentado às duas câmaras de Westminster para votação.

Na mesma linha de promoção de uma abordagem mais inclusiva, a primeira- -ministra garantiu ainda que os representantes dos governos da Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte estarão envolvidos nas negociações com a UE e anunciou a criação de um comité especial para o efeito – uma medida que não parece convencer, ainda assim, Nicola Sturgeon. Citada pela BBC, a primeira-ministra escocesa acredita que a confirmação da decisão de abandonar o mercado único torna um novo referendo independentista “praticamente inevitável”, uma vez que, defende, aponta um “futuro distinto” do da Escócia, onde o “remain” venceu por larga vantagem no referendo.

Enfim, um plano

Se, no início do seu discurso, May assegurou que o Reino Unido será sempre um parceiro comercial de excelência e um aliado dos europeus – ainda que tenha lembrado que o seu país foi muitas vezes rotulado como o “parceiro esquisito” da União -, o final do mesmo deixou transparecer algum desconforto em relação à forma como o processo está a ser gerido nas instituições comunitárias. A líder do executivo britânico condenou quem defende, dentro da UE, a adoção de um “acordo punitivo” para o Reino Unido como forma de dar o exemplo a outros Estados-membros que estarão a pensar desencadear processos de saída semelhantes. 

E foi já depois de enumerar as várias consequências negativas, para a Europa, inerentes a um acordo daquela natureza que May deixou um derradeiro aviso: “Um não acordo é melhor do que um mau acordo” – palavras estrategicamente escolhidas para acalmar a crítica, agradar aos “brexiteers” e deixar a UE de sobreaviso, e suficientemente vagas para convencer toda a gente de que, afinal, há mesmo plano.

Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, recorreu ao Twitter para dar voz àquilo que, muito provavelmente, vai na cabeça de todos. “Um processo triste, [em] tempos surreais, mas pelo menos é um anúncio mais realista sobre o Brexit”, escreveu naquela rede social.