Expurgar legado de Obama é prioritário para administração Trump

Objetivo primordial do próximo presidente será desmantelar ao máximo a herança do democrata, com ou sem a ajuda do Congresso. Posicionamento internacional dos EUA não é assim tão claro.

Quando o 45.o presidente dos Estados Unidos se sentar pela primeira vez na Sala Oval da Casa Branca para trabalhar, em cima da mesa já deverá estar a repousar, seguramente, uma lista de ordens executivas prontas a assinar, redigidas sob o propósito de travar, impugnar ou banir alguns dos principais alicerces dos oito anos de liderança de Barack Obama. O mais provável é que muitas dessas diretrizes acabem por ir parar ao Congresso e ficarem aí empatadas – ainda que por lá haja uma maioria republicana – enquanto não são apresentadas alternativas credíveis. Mas na mente de Donald Trump é claro o caminho a seguir. No plano para os primeiros 100 dias de presidência, apresentado sob a forma de proposta de “contrato com o eleitor americano”, o magnata definia como prioridade número 1, com vista à “restauração da segurança e do Estado de direito”, a “revogação de todas as ações executivas, memorandos e ordens inconstitucionais proclamadas pelo presidente Obama”.

O rótulo da inconstitucionalidade foi o escolhido, mas o pano que Trump quer passar pelo chão que o seu antecessor sujou é manifestamente político. A começar pelo Obamacare. Presidente e Partido Republicano já decidiram que o desmantelamento do programa de saúde, que abrange mais de 21 milhões de norte-americanos, é para rasgar e substituir por outro. Falta saber qual, e isso está a preocupar os congressistas do GOP, tanto pela inexistência do dito como pelo que há em cima da mesa. É que o magnata causou estupefação junto dos republicanos quando revelou, numa entrevista ao “Washington Post”, que já pensou num seguro de saúde de substituição do Obamacare. Será “mais barato”, abrangerá “toda a gente” e “vai ser aprovado” no Congresso. Como? “Não vou dizer como, mas vai ser aprovado”, garantiu.

O legado de Obama está intimamente associado ao plano de saúde por si gizado, mas Trump não ficará por aí na sua missão de apagar o rasto democrata de Washington. O veto à construção do oleoduto Keystone XL, que ligaria os EUA ao Canadá, é uma das guerras mais febris entre a anterior administração e os republicanos, e o magnata já prometeu “levantar os obstáculos” e avançar com o projeto.

As escolhas controversas para as pastas da diplomacia, energia e ambiente, aliadas ao desprezo oferecido por Trump, durante a campanha, ao aquecimento global, poderão resultar igualmente no abandono dos Acordos de Paris, cujas disposições entraram em vigor no final de 2016.

Fora da órbita exclusiva de Obama mas associados à sua administração estarão outros assuntos que Trump quer despachar rapidamente. O processo de deportação de mais de dois milhões de imigrantes ilegais, o início da construção do muro de separação com o México e a renegociação dos acordos da NAFTA são alguns deles.

Um polícia isolacionista

A estratégia de política externa a ser seguida pelo tradicional polícia mundial durante os próximos quatro anos é, provavelmente, a maior incógnita que envolve a chegada de Donald Trump ao poder. Quer pela coleção de posicionamentos aparentemente contraditórios – o republicano alternou promessas de “paz através da força” e “operações militares agressivas para esmagar o Estado Islâmico” com garantias de nacionalismo e de protecionismo e ameaças de redução do orçamento da NATO e da ONU –, quer pela forma como o próximo presidente parece a estar percorrer um caminho de aparente comunhão com a Rússia e um outro de manifesto antagonismo com a China.

Os primeiros dias de presidência até podem resultar numa tomada de posição sobre Moscovo no que toca às sanções, às acusações de interferência nas eleições ou às ligações da equipa de Trump com os russos, mas a oficialização de uma estratégia transparente de confrontação ou de alinhamento com Putin ainda permanece debaixo de uma intensa nuvem de fumo.

Trump sabe, ainda assim, que o estatuto de maior potência mundial irá obrigá-lo a escolher aliados e a precisar inimigos, e que foram exatamente essas escolhas que fundaram os alicerces da grande América que o próprio promete trazer de novo para a ribalta. Se o estatuto da Federação Russa ainda é uma incógnita, Israel poderá respirar de alívio, uma vez que terá lugar cativo debaixo do guarda-chuva americano. Com maior ou menor discussão, Europa, Japão e Coreia do Sul também deverão manter as amizades com Trump, mesmo que com menos meios de subsistência militar e um ou outro amuo. Por outro lado, a China parece ter sido escolhida como inimiga predileta do presidente que, resolvido a acabar com a asfixiante influência chinesa na economia americana, acena vistosamente com a possibilidade de uma guerra comercial. Irão, Cuba, Turquia e México juntam-se à Rússia no limbo do mistério diplomático que aí vem.

Trump não esconde, contudo, que quer arrumar a casa primeiro, e só depois o mundo. Os primeiros dias servirão para testar se o polícia mundial aguentará fechar-se a sete chaves dentro dos EUA ou se será obrigado a ir meter-se em trabalhos lá fora.