“Adélia, por que cantas? Porque sei. E a tua mãe cantava porquê? Sei lá, se calhar para aliviar a fome ou as penas”, recorda Tiago Pereira acerca de Adélia Garcia, a mulher que esteve sempre presente em todos os seus filmes, enquanto realizador e documentarista, mentor do projeto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria. “A Adélia representa o paradigma do cantar, representa a música no seu sentido primordial, a música como algo comum a toda a gente. O cantar porque sim. E isso era muito bonito.”
Tiago Pereira não foi o primeiro nem o único a subir a Trás-os-Montes para gravar a Adélia Garcia. “Quero que isto fique bem claro. A única diferença em relação a mim é que comecei a criar parcerias entre ela e outros músicos, que levava até ela para gravarem juntos. E a Adélia entra em todos os meus filmes. Criei uma relação com ela e comecei a visitá-la regularmente, durante 12 anos, cheguei a passar Natais com ela”, explica Tiago Pereira. “Mas não quero ser visto como netinho da Adélia. Ela foi sempre muito generosa comigo, mas porque ela sempre foi generosa com toda a gente. Ela era assim.” Adélia Garcia morreu a 31 de dezembro de 2016. Se assim não fosse, estaria seguramente em festa pelo sexto aniversário do projeto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria.
É em jeito de celebração deste sexto aniversário que a partir de amanhã, o projeto criado por Tiago Pereira passará a ter todo o seu arquivo organizado em www.amusicaportuguesaagostardelapropria.org, um site onde se replicam as viagens que o realizador e este projeto fizeram e continuam a fazer, através de milhares de vídeos. Em simultâneo é lançado o livro da série documental, exibida na RTP2, “O Povo que Ainda Canta” (ed. Tradisom). Tudo numa festa de entrada livre no Teatro da Trindade, a partir das 17h.
O homem que toca flauta e no bolso traz sempre uma fotocópia de uma fotografia do seu pai. Ou Manuel Lima, o homem de uma aldeia ao pé de Pinhão, que toca órgão, guitarra portuguesa e acordeão, apesar de não saber ler nem escrever, e que nunca se tinha ouvido tocar nada daquilo que toca. O grande etnógrafo da Azambuja, os homens e as mulheres do Cante Alentejano. as rainhas dos trava-línguas, a polifonia de Lafões, as adufeiras de Monsanto e do Paúl, os gaiteiros de Coimbra. E Adélia, claro. Sempre Adélia.
Tudo isto marca presença no site, mas sobretudo no livro, que tem também os DVDs com todos os episódios da série, bem como DVDs de extras. E fotografias, muitas. E relatos. Cartografias de afetos. Pessoas que fazem parte da vida do realizador e do homem que, há seis anos, começou a traçar a pauta deste retrato de Portugal e que, com isso, passou a “ter sempre uma velhinha para visitar, em alguma região do país.”
Sem saber, foi em 1998, quando em Odeceixe ouviu pela primeira vez um homem trautear o som dos acordeões, que começava aquele que viria a ser o projeto de uma vida. “Foi a partir daqui que comecei a gravar sons e músicas na rua”, explica Tiago Pereira. Pouco depois nasce “Significado – Se a Música Portuguesa Gostasse Dela Própria”, um filme feito para a Associação d’Orfeu, que permitiu ao realizador e documentarista perceber que “mesmo dentro da música tradicional as pessoas andavam de costas voltadas umas para as outras e não se ouviam umas às outras.”
Havia trabalho a ser feito. Um desejo imenso de ouvir os outros, mas ao mesmo tempo promover uma “contaminação”, para que as pessoas deixassem de estar de costas voltadas e antes se olhassem de frente. Uma missão para o homem que cresceu a ouvir o pai tocar cavaquinho e ao mesmo tempo queixar-se que “a música tradicional era sempre a mesma coisa”. Uma queixa que fez com que Tiago percebesse que havia que levar a música tradicional a outros públicos, na tal “contaminação”.
O primeiro passo para espalhar este ‘vírus’ foi levar B Fachada a conhecer Adélia e tocar com ela, nascendo desse encontro mais um filme, “B Fachada, Tradição Oral Contemporânea”. “A verdade é que, para mim, as canções que o Fachada estava a fazer em Lisboa, numa lógica da tradição oral, me soavam à mesma coisa que a Adélia fazia em Trás-os-Montes. Por que não juntá-los? Foi ela que lhe ensinou o ‘Filomena’, que as pessoas depois acharam que era um tema dele.”
Em simultâneo começaram a surgir cada vez mais projetos que redescobriam a métrica portuguesa, depois do hiato dos anos 80 e de toda uma sequência de altos e baixos, contrariados positivamente com o surgimento de editoras como a Flor Caveira e a Amor Fúria. É nesta altura que começa a aumentar o interesse jornalístico em relação a estes movimentos e, a 15 de janeiro, é publicado um artigo no suplemento do “Diário de Notícias”, que Tiago Pereira não tem dúvidas em reconhecer ter sido fundamental para os passos que se seguiram. “Ali fala-se da nova geração de músicos que cantam em português. Está lá o Jorge Cruz, o Manuel Fúria, o Fachada e eu. Li aquilo e percebi: é agora.” No dia seguinte, Tiago juntou-se com Márcia e Jorge Cruz num estúdio e assim nasceu A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, “um projeto que nunca foi totalmente coerente, sempre andou à sua procura. Mas cuja grande sorte é poder ser incoerente. Somos sobretudo um movimento ativista.” Um projeto que, acima de tudo, queria documentar o que se fazia na música portuguesa, nos seus diferentes olhares e camadas. Um trabalho que foi feito, no passado, por figuras como Armando Leça, José Alberto Sardinha, Mário Guerreiro, Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti. “Foram eles que traçaram pela primeira vez o mapa etnomusical do país.”
O que começou por ser a intenção de gravar um vídeo por semana, depressa passou a ser a confirmação de um vídeo por dia. E assim o ano que se seguiu foi uma roda-viva de viagens pelo país, continente e ilhas, câmara de filmar e equipa atrás. “Ao fim de um ano tínhamos feito mais de 300 e tal vídeos. Ainda assim, sentia que o país continuava – e continua – preconceituoso em relação aos ranchos folclóricos. Devíamos dar António Ferro e cultura popular nas escolas, para os miúdos perceberem o contexto dos ranchos folclóricos no pós 25 de abril.” Consciente desta necessidade de olhar para a frente, olhando para trás e para dentro, Tiago Pereira queria acompanhar o que se estava a fazer de novo e fresco, mas também perceber as origens – para que os outros pudessem também percebê-las. “Comecei a perceber que, se começasse a postar vídeos online das novas bandas portuguesas e ao lado postasse o de uma velhinha a cantar, algumas pessoas iam acabar por ver os dois.” Lá está, a “contaminação”.
São todos estes vídeos que agora arranjaram casa em forma de site. Uma nova fase para A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, projeto que continua até porque, quando o assunto é música, não há paredes. “A música é genésica. Enquanto houver música vamos continuar. É certo que as velhinhas vão morrendo, mas vão nascendo miúdos. Somos um projeto contra o tempo, mas que todos os dias renasce. É isso que me dá força para continuar sempre”