Nas horas finais que antecederam o soar do gongo após a desvairada corrida presidencial norte-americana, o Twitter de Donald Trump andava estranhamente silencioso. Outrora ferramenta predileta de desabafos corrosivos do cidadão e candidato à Casa Branca pelo Partido Republicano, a referida conta naquela rede social tinha posto um travão pouco habitual ao tradicional atropelo de insultos e sugestões sobre o viciado sistema eleitoral do país, e dedicou-se à “estranha” tarefa de agradecer apoios e apelar ao voto. Houve logo quem tenha sugerido que a equipa de campanha havia conseguido, finalmente, limitar o acesso do magnata ao Twitter, com receio de que aquele pudesse deitar tudo a perder com uma mensagem descuidada.
Contra todas as previsões e expetativas, já se sabe, Trump foi eleito. Mesmo tendo perdido o voto nacional para Hillary Clinton, amealhou os votos necessários para garantir a maioria no Colégio Eleitoral após uma performance sensacional na velhinha cintura industrial dos grandes lagos dos EUA. O seu discurso de vitória foi calmo e ponderado – sem menções às promessas de mandar prender a candidata derrotada, de limitar a entrada de muçulmanos no país ou de obrigar o México a pagar pelo muro que separará os dois países – e o primeiro encontro com Barack Obama, em Washington, mostrou um homem comedido, aparentemente capaz de apresentar a tal postura “presidencial”, que tantos o acusavam de não ter. Dificilmente o mais fanático e pessimista anti-Trump não terá soltado um ínfimo suspiro de desafogo perante a docilidade apresentada pelo presidente eleito naquelas primeiras horas pós-eleição, aparentemente reforçada pela acalmia na sua conta de Twitter.
Mas o desafogo durou pouco. O Twitter de Trump foi “reativado” escassos dias depois, e o tempo que passou desde aí até à cerimónia solene de tomada de posse desta sexta-feira, em frente ao Capitólio, testemunhou a confirmação de que o Trump-candidato e o Trump-eleito são, na realidade, a mesma pessoa. Alguém disposto a atacar e descredibilizar quem quer que ponha em causa a sua legitimidade, seja uma atriz, um ícone dos direitos civis, um meio de comunicação ou uma agência de serviços secretos.
Transição pouco suave
O magnata do imobiliário bem apregoou uma “transição suave”, mas a transferência de poder entre a presidência de Obama e a futura administração Trump foi tormentosa. Em pouco mais de dois meses recontaram-se votos num estado, a CIA oficializou a “intromissão” de hackers russos na campanha presidencial e o presidente democrata apostou forte em dificultar a vida do seu sucessor, liderando uma vaga inédita de decisões de última hora que, de acordo com o Twitter do republicano, colocaram “obstáculos” e “inflamaram” a transição.
Entre aquelas destacam-se as sanções a Moscovo, a proibição de perfurações no Ártico, a abstenção norte-americana no Conselho de Segurança da ONU sobre a resolução de condenação do estabelecimento de colonatos judeus em território palestiniano, o registo de última hora de milhões de americanos no Obamacare, a transferência de vários prisioneiros de Guantánamo ou mesmo os perdões e modificações de penas de prisão – incluindo a de Chelsea Manning, a militar que divulgou milhares de documentos confidenciais através da WikiLeaks.
Se a isto juntarmos a escolha de figuras controversas para determinados cargos da próxima equipa presidencial, torna-se difícil afirmar que a transição esteve sempre sob controlo para os lados da Trump Tower. O resultado está aí à vista: embora praticamente todas as escolhas do presidente eleito para o seu gabinete estejam em vias de poder vir a ser aprovadas pelo Senado norte-americano, controlado pelo GOP, a verdade é que Trump sentar-se-á na Sala Oval, a partir de sexta-feira, com apenas metade da sua equipa confirmada.
A esta realidade não é alheio, claro, o perfil de muitos dos escolhidos para liderar as principais pastas da administração e exercerem o papel de conselheiros durante os próximos quatro anos. Nomes como Rex Tillerson, Scott Pruitt, Rick Perry, Tom Price, Steve Bannon ou Jared Kushner confirmam a promessa eleitoral de Trump de “drenar o pântano” de Washington, sim, mas levantam sérias dúvidas sobre a eventual convivência, debaixo do mesmo teto, entre o interesse privado e a prossecução do bem público.
A reputação de Trump foi a que sofreu mais com a transição atribulada. De acordo com a mais recente sondagem do “Washington Post” e da ABC News – catalogada por Trump, através de um tweet mordaz, como “falsa” e “manipulada” –, o próximo presidente dos EUA porá o primeiro pé na Casa Branca envolto numa das mais baixas taxas de aprovação da história norte-americana recente. Os resultados do inquérito mostram que apenas 40% dos participantes têm uma opinião favorável sobre o homem que chega hoje à presidência. Longe, por exemplo, dos já reduzidos 62% que pairaram sobre George W. Bush em 2001, após a célebre batalha eleitoral no Supremo Tribunal contra Al Gore.
Para a comentadora política do “LA Times”, Cathleen Decker, a explicação dos resultados é simples. Somando a transferência complicada do poder à utilização abusiva do Twitter para o desabafo de problemas pessoais e nacionais, Trump chega ao Inauguration Day carregando a imagem de alguém que ainda “está a lutar contra a sua nação, e não por ela”.
Ao sabor da imprevisibilidade
Confirmando-se que os perfis do candidato e do presidente eleito correspondem à mesma pessoa, resta saber se aqueles conseguem encaixar ainda o de presidente dos EUA. Os últimos meses parecem sugerir que o Trump-presidente será o mesmo de sempre: polémico, contraditório, decidido e orgulhoso. Mas independentemente da postura que possa vir a ser adotada – mais ou menos presidencial, mais ou menos Trump, com mais ou menos tweets –, o potencial de imprevisibilidade que o magnata traz consigo e com o qual promete forrar as paredes da Casa Branca será sempre elevadíssimo. Trump prometeu “tornar a América grande de novo” e, para cumprir o seu desígnio, terá de encontrar um equilíbrio entre uma estratégia protecionista, que já disse querer implementar, e uma atuação externa pouco ativa, que também não consegue negar.
Quanto à cerimónia de tomada de posse de hoje (com início às 11h30 locais, 18h30 em Portugal continental), mais previsível não poderia ser. Obama receberá Trump na Casa Branca e partirão juntos para o Capitólio. Será ali que o vice-presidente e o presidente eleitos prestarão juramento, perante uma multidão que, mesmo não contando com várias figuras do universo democrata, incluirá nomes como Hillary e Bill Clinton, George W. Bush, Jimmy Carter ou Dick Cheney.
Após o juramento, Trump subirá ao palco e discursará, pela primeira vez, como líder máximo da maior potência mundial e 45º presidente dos EUA. Vários presidentes fizeram questão de aproveitar este discurso para deixar no ar uma frase forte ou para oferecerem algumas pistas sobre o que se poderá esperar para os próximos quatro anos, pelo que Donald Trump quererá, seguramente, seguir-lhes o exemplo e deixar a sua marca. Se as mãos não estiverem à vista, convém espreitar o Twitter, para uma tradução mais especializada da mensagem transmitida.