Durou mais de seis meses o período em que pouco ou nada se decidiu, no Reino Unido, sobre o plano de saída dos britânicos da União Europeia, mas a semana que passou é testemunha de que a bola já começou a rolar. Obrigada pelo Supremo Tribunal, Theresa May apresentou uma proposta de lei ao parlamento, onde pede autorização para acionar o artigo 50 do Tratado de Lisboa, e até contou com o apoio de Jeremy Corbyn, que prometeu a cooperação do Labour Party. O problema é que essa colaboração foi transformada na imposição de um voto favorável à proposta, extensível a todos os deputados trabalhistas. A indignação junto das hostes do maior partido da oposição britânico, por tamanha exigência, já levou a promessas de violação da disciplina de voto e até a demissões.
O pontapé de saída na semana louca que se viveu em Londres foi dado na terça-feira, pelo Supremo Tribunal do Reino Unido. Convocado para analisar o recurso interposto pelo governo, relativo à decisão do Tribunal Supremo de novembro do ano passado, o colégio de 11 juízes chegou à mesma conclusão que aquele órgão: é em Westminster que reside a legitimidade política para se dar início ao Brexit, pelo que May apenas poderá formalizar o pedido de saída da União, após a votação favorável dessa vontade nas duas câmaras do parlamento.
Ao longo de todo o processo, o governo sempre acreditou estar legitimado pelo resultado do referendo do dia 23 de junho – no qual 51,9% dos participantes decidiu que romper com a UE era o caminho a seguir –, para liderar o Brexit, pelo que a oposição catalogou a decisão do tribunal como uma «humilhação» a May e uma vitória da democracia sobre a estratégia de «desrespeito pelo parlamento», seguida pela sua equipa. Mas nem o veredito, nem as críticas, parecem ter beliscado a postura do executivo. Resoluto em iniciar as negociações com a UE antes do final de março, prometeu, apresentar uma proposta de lei «o mais objetiva possível», pela voz de David Davis, o secretário de Estado mandatado para liderar o processo de saída da União.
Proposta e confusão
A proposta de lei foi mesmo apresentada, na quinta-feira, à Câmara dos Comuns – que terá apenas cinco dias para a debater e aprovar o texto, antes de o passar à Câmara dos Lordes –, mas não foi bem recebida nas bancadas da câmara baixa de Westminster. É que o executivo resolveu levar ao extremo a sua promessa de objetividade e apresentou um documento com pouco mais de 130 palavras, distribuídas por oito linhas, divididas em duas alíneas e deu-lhe o pragmático nome de ‘Ato (de Notificação de Retirada) da União Europeia 2017’. No pequeno texto consta o pedido de autorização ao parlamento e a intenção de se poder ultrapassar tudo o que foi instituído nos termos do European Communities Act, de 1972 – o ato legislativo aprovado pelo parlamento britânico que definiu as bases para a entrada do Reino Unido na Comunidade Económica Europeia.
Se a simplicidade do documento causou tumultos junto da oposição, a manifestação da promessa de «não criar obstáculos» à aprovação do mesmo, garantida por Corbyn, provocou um autêntico terramoto no Partido Trabalhista. A ‘secretária de Estado-sombra’ Jo Stevens, os ‘ministros-sombra’ Daniel Zeichner e Tulip Siddiq, bem como os whips Jeff Smith e Thangam Debbonaire – responsáveis pelo cumprimento da disciplina de voto – anunciaram que vão votar contra a proposta. Stevens abandonou mesmo o cargo de máxima responsável pela oposição ao governo, no que toca aos assuntos relacionados com o País de Gales e Siddiq revelou que irá desistir do seu lugar na área da Infância. «Abandonar a União Europeia representa uma enorme incerteza para quem me elegeu, já que a maioria acredita que as desvantagens da saída prevalecem sobre quaisquer potenciais benefícios», justificou Siddiq, citada pela BBC.
Jeremy Corbyn, por seu lado, confessou compreender a pressão que recai sobre os deputados em cujas circunscrições o ‘não’ ao Brexit venceu, mas defendeu que é necessário que o partido se «una em volta de questões mais importantes», nomeadamente o respeito pela vontade do país, como um todo, e a necessidade de se pôr fim ao período de incerteza.
Pelo menos 14 deputados trabalhistas anunciaram que vão desobedecer às ordens da direção partidária, numa revolta que, no final das contas, acabará por ser apenas simbólica, já que os tories têm maioria na Câmara dos Comuns e não deverão ter dificuldades em fazer aprovar a proposta de lei.
Esta é a segunda vez que a liderança de Corbyn é posta em causa pelos deputados, desde que assumiu as rédeas do maior partido de esquerda do Reino Unido. O fracasso da campanha pelo remain caiu-lhe diretamente em cima dos ombros e forçou uma segunda eleição no partido, no espaço de dois anos. Uma nova vitória fez acalmar a contestação interna, mas Corbyn ainda terá de batalhar muito para convencer os deputados a seguirem-no sem hesitações. O Brexit não está a ajudar.