Quando ouvimos Bobby Darin cantar – «Oh, the shark has pretty teeth, dear/And he shows them pearly white/Just a jack-knife has Macheath, dear/And he keeps it out of sight» – raramente nos lembramos que a letra se trata de uma adaptação de um poema de Bertolt Brecht, esse escritor imenso que amava o boxe e odiava Adolf Hitler. Aliás, amava tanto o boxe que escreveu uma das peças mais extraordinárias com desporto como tema: Placa Comemorativa Para 9 Campeões do Mundo. Que começa assim: «Aqui vai a história dos campeões do mundo de pesos médios/Dos seus combates das suas carreiras/Desde 1884/Até aos nossos dias». Gostava de ter gostado assim de boxe. Ou melhor: gostava de ter aprendido a escrever assim. Quando me passou pela cabeça – e sobretudo pela cabeça do meu editor, o grande João Rodrigues – publicar um livro de poemas, Não Morrerei em Buenos Aires, queria ter tido a coragem de ter feito a minha ‘Placa Comemorativa Para 10 Campeões do Mundo de Xadrez’. Não tive. Mas o balanço de Brecht ficou-me na memória até hoje: «Stanley Ketchel/Célebre por 4 verdadeiras batalhas/Que travou com Billie Papke/E por ser o mais bruto boxeur de todos os tempos/Foi abatido pelas costas aos 23 anos/Num sorridente dia de outono/Quando estava sentado diante da sua quinta/Invicto». Não falarei de Billie Papke. Hoje falo de xadrez.
Falo do alemão Emanuel Lasker. Durou vinte e sete anos o seu reinado e teve um final dramático em março de 1921, em Havana, à melhor de 24 partidas que não duraram mais do que 14, pois Lasker, absolutamente humilhado, cedia o seu título desistindo e evocando problemas de saúde. Ou seja, enquanto Brecht cantava «Billie Papke/Primeiro génio do infighting/O maior combate de Billie/Foi a famosa desforra contra Stanley Ketchel/– O combate dos combates/Ouviu-se então pela primeira vez a expressão:/Máquina humana de boxe», eu preferia ter falado de José Raúl Capablanca, um espécie de Pelé do xadrez, o virtuoso mais puro que entrou para a lenda, envolto na sua figura de_Rodolfo Valentino, elegante, mundano, amado pelas mulheres, convenientemente transformado em diplomata, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Cuba. Durante o seu tempo de campeão do mundo, Capablanca só perdeu quatro partidas em cem e apenas aceitou pôr o seu título em jogo em Setembro de 1927, em Buenos Aires, defrontando o russo Alexander Alekhine, o primeiro homem a vencer ‘O_Invencível’. José Raúl Capablanca morreu em Nova Iorque, na manhã do dia 8 de Março de 1942, atormentado pelo desgosto de Alekhine não ter cumprido a promessa de pôr o título em jogo contra ele.
Bertolt Brecht trouxe para o seu poema, «Frank Klaus que era mestre no combate de perto, corpo a corpo/Sabia pôr todo o peso nos golpes». Eu prefiro o que os mestres diziam de_Alekhine, que tinha um jogo brilhante como o sol, mas cuja personalidade sombria o atirou para os braços do álcool e para um final triste, no Estoril, em 1946, levando consigo para o túmulo o título de campeão do mundo, que apenas Max Euwe lhe tirou durante dois anos. Importante é o ritmo. Por isso, continuo: a Alekhine sucedeu Botvinik, o fruto mais duradouro de uma filosofia – «ensinemos o xadrez aos trabalhadores!» – e por causa do qual, no dia da sua vitória, a 8 de Maio de 1948, o Pravda escreveu – «Esta é a vitória da nova cultura socialista!». Foi então preciso esperar nada menos do que vinte e quatro anos, até 1972, para que surgisse um campeão fora da União Soviética. Até lá, Botvinik, o engenheiro de motores, seria derrotado por Smyslov, O_Barítono, recuperando-lhe o título no ano seguinte, outra vez em Moscovo. Em 1970, foi a vez de Mikhail Tal, um letão de Riga, conhecido como ‘O_Mago’, bater Botvinik no ‘match dos contrastes’, que opôs um jovem de 24 anos a um homem de 50, um risonho rapaz que gostava de se divertir contra um bisonho moscovita que não perdia o semblante sério. No ano seguinte, Botvinik voltaria a ser campeão, pondo fim ao reinado mais breve da história do xadrez.
Em abril de 1963, Tigran Vartanovitch Petrosian, arménio nascido na Geórgia em 1929, o homem de todas as alcunhas, conhecido por ‘O_Pitão’ por ser capaz de esmagar lentamente os seus adversários, ou por ‘Tigre Sonolento’, graças aos súbitos saltos das suas peças no tabuleiro, ou ainda ‘Iron Petrosian’, pela inquebrantável vontade de ferro, tornou-se campeão e só seis anos mais tarde, em 1969, Boris Spassky, ‘O_Cínico’, foi capaz de derrotar o ‘Tigre’.
Em 1972, estávamos no auge de Guerra Fria, e a Islândia recebeu Spassky e Fischer para ‘O_Jogo do Século’. Só essas personagens poderiam ser melhores do que «Al Mac Coy/O pior dos campeões dos pesos médios/– Só sabia apanhar».
afonso.melo@newsplex.pt