«Sem medo»

No Pátio D. Fradique, que ruiu e ainda não foi reconstruído, mesmo junto ao Castelo de S. Jorge, em Lisboa, há uma série de grafitos, entre os quais este, que me impressionou pelas palavras e pela pintura, que, para mim, tem uma força ilustrativa imensa. 

Do peito de alguém sai um barco que solta amarras e parece querer navegar, sem medo das tempestades que pode ter de vir a enfrentar, dos cabos das tormentas que terá de contornar, e dos «Adamastores» de que terá de se libertar.

É «sem medo» que temos de enfrentar a vida, assumindo o leme e reconhecendo que ela não acontece só por si, mas porque atuamos e fazemos, conscientemente, com que a vida aconteça. Como diz o provérbio chinês: «Barco sem rumo não sabe o que é vento favorável». Só com um rumo, um destino, somos capazes de reconhecer quando o vento sopra a nosso favor. Caso contrário, acontece-nos o que descreve Mário de Sá-Carneiro: «Passei pela minha vida / Um astro doido a sonhar. / Na ânsia de ultrapassar, / Nem dei pela minha vida…».

Os portugueses são, no geral, um povo com medos – medo do futuro que não conhecemos, medo do passado que herdámos, medo do presente que não controlamos. Temos medo da crise, medo de perder o emprego, medo de não ter boas notas nos exames, medo de que os políticos não tomem boas decisões, medo de tantas coisas… Como disse Alexandre O’Neill: «O medo vai ter tudo / quase tudo / e cada um por seu caminho / havemos todos de chegar / quase todos / a ratos».

Mas o medo acaba por criar amarras, por nos agrilhoar a um mundo de ilusões, que criamos dentro de nós ou de potenciais perigos que se encontram fora de nós, mas que, quando demasiado interiorizados ou consciencializados, acabam por impedir-nos de atuar e de sermos protagonistas do nosso próprio destino.

Como afirmavam já os antigos filósofos chineses, que nos parecem tão distantes e teóricos, mas que, na realidade, continuam a ter utilidade prática – como demonstra Michael Puett no livro O Caminho da Vida – somos nós os causadores do que nos acontece. Há, obviamente, fatores externos que não controlamos, mas, no fundo, aquilo que fazemos reflete-se em nós e naqueles que estão à nossa volta. Daí que seja importante termos consciência das nossas decisões e dos efeitos que estas causam, em nós e nos outros.

Não dar abertura a que a vida nos aconteça é exatamente matar as possibilidades de fazermos da nossa vida um local de beleza, de felicidade, de amor à própria vida.

E ter medo é calar em nós a possibilidade que temos de dar a nossa opinião, de fazer ouvir a nossa voz, de vermos reconhecidos os nossos anseios e os nossos sonhos, de construirmos o nosso próprio presente e assegurarmos que temos futuro – futuro para nós, para os nossos filhos, para os filhos dos nossos filhos.

Por tudo isto, e por muito mais que fica por dizer, importa que, como afirmou Miguel Torga, em Portugal, saibamos esquecer «as caravelas impossíveis do passado» e consigamos ver partir «os veleiros possíveis do presente».

Não nos calemos, não tenhamos medo e não deixemos que nada, nem ninguém, nos tape a boca. Deixemos, pois, que só os beijos nos tapem a boca!

 

Maria Eugénia Leitão

Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services