“A esquerda pode morrer”: foi com estas palavras que, em setembro, Manuel Valls alertou os deputados socialistas para o perigo de não haver, pela segunda vez, nenhum candidato de esquerda na segunda volta das eleições francesas. Há duas coisas que podem ser ditas: a esquerda social-democrata está, de facto, moribunda e a candidatura de Valls está morta. O antigo primeiro-ministro de Hollande foi derrotado nas primárias da esquerda por Benoît Hamon. A sua campanha por uma esquerda “responsável” com propostas “possíveis” foi derrotada por um candidato que ele e o aparelho do Partido Socialista Francês reputam de utópico.
Quais são essas propostas “utópicas” que deram a vitória nas primárias a Hamon e que levam a mais conhecida revista do centro-esquerda francês, “L’Obs”, a dar-lhe a capa, com o tonitruante título “Benoît Hamon – A Rutura”?
Basicamente são quatro propostas mais fortes em três áreas distintas:
A ideia de que é preciso um outro modelo de desenvolvimento que seja sustentável do ponto de vista ecológico;
A proposta da implementação de um rendimento básico incondicional que seja dado a todos os cidadãos, independentemente dos seus rendimentos e situação no emprego;
A taxação, por parte do Estado, das máquinas que promovem a automação e retiram postos de trabalho;
E a afirmação de que a laicidade do Estado não pode ser confundida com o combate à religião muçulmana, e que os muçulmanos, com a sua cultura, também são partes integrantes da República.
A proposta mais polémica é a do rendimento básico incondicional. Benoît parte do pressuposto de que a perda de empregos por causa da automação, que alguns estudos estimam poderá ser de 40% até 2060, é impossível de combater e deve mesmo ser aproveitada: “A OCDE, a Universidade de Oxford, o Conselho de Orientação para o Emprego, toda a gente diz [que vai haver esta quebra de emprego e de crescimento económico]. Quem, então, propaga ideias míticas e quem é na realidade? Temos de aproveitar esta oportunidade incrível que é a revolução digital para trabalhar menos e ganhar o mesmo, nomeadamente para aqueles que têm empregos muito duros. Por que razão a esquerda renunciaria a uma tal promessa de progresso e de emancipação dos indivíduos?”, declara Hamon ao “L’Obs”. O candidato socialista não vê problemas com o financiamento desta medida de rutura. Os estudos apontam para que a implementação do rendimento básico incondicional, que atribuiria a todos os cidadãos franceses 600 euros mensais, custaria aos contribuintes 349 mil milhões de euros, segundo cálculos do Instituto Montaigne – “tanto como todo o Orçamento do Estado”, como sublinham os adversários de Hamon. Para o candidato dos socialistas, este dinheiro “não vai desaparecer num buraco negro”, trata-se de uma redistribuição de riqueza que, juntamente com a taxação da automatização, vai gerar as suas próprias condições de sustentabilidade. Para a primeira fase do programa, que o candidato orça em 45 mil milhões de euros, as suas expetativas são francamente otimistas: “Eu sei que pesará sobre o Orçamento do Estado, mas é uma transferência de riqueza. A verdadeira questão é o que conseguiremos com isso. O rendimento básico incondicional libertará potencialmente 600 mil empregos de estudantes, e não é neutro. Ele meterá em circulação muito dinheiro: 45 mil milhões de euros num primeiro momento. E permitirá erradicar a pobreza. É uma escolha política que não tem nada de irracional, numa altura em que se colocaram 40 mil milhões de euros no pacto de responsabilidade, que só criou 70 mil empregos”, argumenta Hamon.
Para financiar o seu plano, o socialista pretende combater a evasão fiscal, criar um imposto mais progressivo sobre a riqueza e património e a nova “taxa sobre robôs inteligentes”, tendo como premissa que, se as máquinas tiram emprego e são lucrativas, devem ser oneradas em sede fiscal.
As críticas sobre a medida vêm de dois lados diferentes: por um lado, a direita e os empresários observam que esse tipo de imposto iria penalizar as empresas que inovam tecnologicamente e aumentar o atraso na modernização das empresas em relação a países mais avançados, como a Alemanha. Por outro lado, forças políticas e pensadores mais à esquerda, como o economista-sensação Thomas Piketty, duvidam da eficiência da medida no combate às desigualdades e desconfiam da liquidação de todos os subsídios sociais clássicos.
Michel Husson, economista da rede internacional ATTAC, originária da França e com grande expressão na esquerda deste país, contesta grande parte dos pressupostos de Hamon: não acredita que o processo de automação vá ser tão profundo que consiga destruir metade dos empregos mas, mesmo aceitando esse pressuposto, parece-lhe uma medida duvidosa: “Por causa dos robôs, não haverá empregos para toda a gente; e por causa da economia digital, não haverá empregos estáveis. Portanto, à falta de empregos decentes, reivindiquemos um rendimento. Este ‘portanto’ seria não só realista como também moderno. Mas assenta numa renúncia definitiva, a do direito a um emprego decente. Admitamos que se concretizam as previsões catastrofistas que dizem que um emprego em cada dois será substituído por um robô. Numa sociedade racional, isso devia ser uma boa notícia: os robôs vão trabalhar em vez de nós, então iremos todos trabalhar a meio tempo! Na lógica capitalista, isto torna-se: vamos destruir metade dos postos de trabalho”, declara numa entrevista traduzida no site Esquerda. net. Para o economista da organização que popularizou a taxa Tobin [taxa sobre as transações financeiras que serviria para erradicar a pobreza], o problema também se verifica na lógica: em vez de uma solução e de políticas sociais coletivas, teríamos uma espécie de cheque individual que substituiria o Estado social: “Um rendimento universal inteiramente realizado representaria uns 30% do PIB, com contas feitas por baixo. Só pode ser financiado na condição de se substituir à proteção social na íntegra; os mil euros por mês substituiriam as pensões e deveriam também cobrir as despesas de saúde. Esta ‘nova proteção social’ seria então individualizada por natureza e, por isso, estaria em rotura com a lógica de solidariedade e de mutualização que sustentaram historicamente o progresso social.”
Um outro problema político importante é que os partidos sociais-democratas advêm inicialmente do movimento operário, e posteriormente fazem sentido como gestores do Estado social. A globalização neoliberal e a integração europeia socavaram as bases eleitorais e sociais da social-democracia. Fizeram com que os partidos sociais-democratas europeus aceitassem como único o programa económico liberal. A perda desse sentido pode não ser recuperada com lógicas que não alterem a situação. Talvez por isso, Benoît Hamon dificilmente irá à segunda volta.