O circo Trump montou estacas em Washington e o seu grande protagonista tem sido, naturalmente, o homem que lhe dá o nome. Desde que tomou posse, há duas semanas, o novo Presidente dos EUA tem dado a cara pela estratégia de desmantelamento das fundações sob as quais se ergueu a administração anterior, seja através da assinatura de ordens executivas polémicas de rutura com o passado, ou dos já tradicionais tweets provocatórios – agora duplamente maçadores para os visados, já que à sua conta pessoal no Twitter, Donald Trump soma agora a página oficial da Presidência.
Mas a entrada em cena de Rex Tillerson, o homem-forte do petróleo e amigo de longa data da Rússia, aprovado pelo Senado para liderar a Secretaria de Estado norte-americana, implica que um novo rosto terá de assumir também o protagonismo, quer pela natureza do cargo, quer pelos vários imbróglios em que o Presidente se tem metido, em matéria de política externa, resultantes da sua abordagem impulsiva e ousada.
O estilo confrontacional de Trump trouxe-lhe inimizades várias durante a campanha eleitoral, pelo que a manutenção dessa mesma postura, nos primeiros dias de liderança, não só não contribuiu para apaziguar os ânimos, como espicaçou ainda mais as críticas. Entre os vários ofendidos pelo Presidente dos EUA encontram-se, além da oposição democrata, muitos imigrantes, parte da classe jornalística e os milhares de civis que se têm manifestado, nas ruas e nas redes sociais, contra as suas políticas.
Àqueles junta-se ainda uma lista extensa de países que, em tão curto espaço de tempo, sentiram na pele a hostilidade do novo chefe de Estado. À China foi praticamente declarada uma guerra comercial, ao México foi prometida uma fatura do muro que será construído na fronteira, à Austrália ameaçou-se com o fim de um acordo de recolocação de refugiados, e aos cidadãos dos sete países de maioria muçulmana que constam na ‘lista negra’ do Presidente – Iémen, Iraque, Irão, Líbia, Síria, Somália e Sudão – foi imposta uma proibição temporária de entrada em território americano. Pelo meio, Israel colocou novo ímpeto na projeto de expansão em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia, legitimado por Trump, dezenas de civis morreram no Iémen, vítimas do primeiro ataque aéreo confirmado pela nova administração, a embaixadora dos EUA nas Nações Unidas ameaçou «apontar os nomes» de todos os Estados que votem contrariamente ao pretendido pelo Presidente e o Parlamento Europeu insurgiu-se contra a nomeação de Ted Malloch para representar os norte-americanos em Bruxelas.
Será este atribulado cenário, edificado em apenas duas semanas, que Tillerson vai herdar e sobre o qual terá de decidir se seguirá com a abordagem ‘trumpista’ ou se tentará fazer da diplomacia um veículo apaziguador das excentricidades do Presidente. Certo é que num primeiro momento terá de resolver o burburinho levantado pelas quase 900 assinaturas de funcionários do Departamento de Estado, contra a ordem executiva anti-imigração e anti-refugiados de Trump, através do chamado ‘canal de dissidência’. O assessor de imprensa da Casa Branca, Sean Spicer, defendeu que o problema se resolve com uma solução simples, mas drástica: ou alinham com a estratégia presidencial ou podem «ir-se embora» – que o diga Sally Yates, a procuradora que desafiou o decreto e foi demitida pela insubordinação.
A disparidade entre os vários dossiês que foram parar às mãos do novo secretário de Estado é tanta e as prioridades neles contidas atropelam-se de tal forma, que quase tem sido deixada para segundo plano a necessidade do esclarecimento do posicionamento dos Estados Unidos em relação à Rússia, um tema bastante sensível para Tillerson, dado o seu historial de proximidade com Moscovo.
A sombra russa
Com 64 anos, o ex-CEO da companhia petrolífera ExxonMobil encaixa-se que nem uma luva no perfil traçado por Trump, para «drenar o pântano» de Washington, uma vez que nunca exerceu qualquer cargo público. Tillerson figura numa longa lista de negócios em larga escala, no mercado da energia, particularmente na região euro-asiática, e foi, por exemplo, peça-chave no acordo alcançado, em 2011, entre a sua empresa e a mega petrolífera estatal russa Rosneft, com vista à extração de petróleo no Ártico. Se dúvidas houvesse sobre o grau de aprofundamento da relação empresarial do multimilionário do petróleo com Moscovo, a condecoração com a Ordem da Amizade, em 2013, pela mão de Vladimir Putin, demonstra que os laços são estreitos e palpáveis.
Foram precisamente as dúvidas sobre a influência desta relação no exercício do cargo que levaram ao número mais elevado de sempre de votos contra, da história do Senado, no que toca à aprovação de um secretário de Estado. Quer pelo antagonismo histórico (e prático) existente entre russos e norte-americanos, com repercussões à escala mundial, quer pela existência de um eventual conflito de interesses – enquanto empresário, Tillerson defendeu publicamente o fim da política de sanções económicas aplicadas à Federação Russa, motivadas pela anexação do território ucraniano da Crimeia e chegou a publicar um relatório crítico, assente nas perdas astronómicas que essa decisão representou para a ExxonMobil – a sombra russa pairou sempre durante o processo de audição, votação e aprovação.
Tillerson foi então confirmado pela câmara alta do Congresso norte-americano, na quarta-feira, com 56 votos a favor e 43 contra – incluindo alguns democratas – e tomou posse nesse mesmo dia. Para já foi-lhe dado o benefício da dúvida, pelo que se espera que o seu trajeto de grande negociador económico possa oferecer uma abordagem proveitosa para a Secretaria de Estado.
Estilo está por definir
Durante as audiências no Comité do Senado, Tillerson revelou uma postura mais racional, e até apaziguadora, em relação a algumas das posições mais controversas de Trump, nomeadamente quando questionado sobre o papel dos EUA na NATO, mas nem esse posicionamento mais sóbrio ajuda a prever qual o estilo que irá levar para a Secretaria de Estado. Somando esta realidade à inexperiência política do ex-empresário, sai ainda mais reforçada a tese que vê a estratégia de política externa da nova administração como a mais imprevisível de sempre. E para muitos, a mais árdua.
«Tillerson tem pela frente a tarefa mais difícil alguma vez enfrentada por qualquer secretário de Estado do período pós-Segunda Guerra Mundial, uma vez que terá de conciliar as intenções do Presidente Trump em romper com décadas de consenso bipartidário, em matéria de estratégia de política externa dos EUA, com a consciência de que, em caso de sucesso, tal rutura pode levar ao caos global», analisa o embaixador norte-americano Ryan C. Crocker, em declarações ao The New York Times.
Para já, Tillerson ainda opta por uma estratégia de comunicação ‘diplomática’ e sem levantar grandes ondas. Num discurso perante os funcionários do Departamento de Estado, na quinta-feira, confessou a existência de tensões pós-eleitorais e prometeu uma abordagem calculista. «Sei que esta eleição foi bastante disputada e que não nos sentimos todos da mesma forma com o seu resultado», admitiu o texano, antes de levantar um pouco o véu sobre a estratégia que pretende levar para Foggy Bottom. «Mudar só por mudar pode ser contraprodutivo e nunca será a minha abordagem. Mas não podemos privilegiar tradições ineficientes sobre melhores soluções», defendeu, citado pelo The Guardian.
Resta saber se isso significa que irá limpar os estilhaços provocados por Donald Trump, ou espezinhá-los ainda mais.