Foi impossível não reparar que estava à conversa com Fanny Ardant. Estavam a combinar algum espetáculo?
(risos) Veio ver a nossa sala para a eventualidade de trazer um espetáculo na altura do LEFFEST. O ano passado, a parceria que começámos foi ótima, permitiu que tivéssemos cá a Martha Argerich e poder oferecer um pequeno concerto dela foi muito bonito. Mas quanto à Fanny Ardant, ainda não é notícia, mas espero que seja. Ela veio ver o palco para ver se seria possível trazer um espetáculo que fez em Avignon para aqui. Uma das coisas em que estamos a tentar apostar é que este teatro, para além de ter uma programação própria – que é uma novidade – se reafirme como um espaço parceiro para atores importantes da vida cultural.
Mas um parceiro interventivo, ao invés do que aconteceu nos últimos anos, em que o Teatro da Trindade parecia um mero espaço que recebia espetáculos sem tecer acerca deles qualquer opinião?
Pior que isso, nos últimos anos tínhamos sido uma casa de reposições. Acho que é importante manter o chamado acolhimento, mas que seja um acolhimento que está desde a origem do projeto e que, de alguma maneira, resulte de uma colaboração com os produtores independentes. Projetos com os quais o teatro, de uma maneira ou de outra, se identifica.
Para que haja um fio condutor?
Claro. Sendo que o posicionamento do Teatro da Trindade é justamente ser um teatro aberto. Não é um teatro que está ligado a um criador só, com uma linha criativa muito especifica. Pelo contrário, é um teatro cujo lema é ‘um palco de todos para todos’. É um palco aberto, com uma oferta diversificada, mas é uma oferta onde o próprio teatro também tem uma palavra a dizer. Isso é o que mais me alegra na programação que apresentámos para este ano: ter ofertas muito variadas e públicos muito amplos. Não há nenhum espetáculo que esteja programado que eu não esteja feliz daqui o ter.
O que é que aconteceu nos últimos anos para que, de alguma forma, o Trindade se demitisse de ser uma voz ativa?
Aconteceu a crise. O teatro pertence à Fundação Inatel, e houve um corte muito grande naquilo que eram os apoios públicos da fundação, que chegou quase aos 45%. E portanto houve uma grande diminuição da capacidade de criar. Basta pensar que o teatro em si é uma estrutura cara, porque é um teatro histórico. É como as grandes casas de família, que respiram emoção em cada esquina, mas é preciso manter a emoção… Acho que basicamente foi isso que aconteceu: um reflexo de um meio cultural a tentar fazer face às dificuldades. Mas acho que o meio teatral fez prova de uma resiliência absolutamente extraordinária, uma capacidade de manter as portas abertas, de não desistir e continuar a lutar.
Para este ano de 2017 o orçamento do Teatro da Trindade é de cerca de 350 mil euros. De resto, é difícil imaginar que aceitasse este cargo se não tivesse condições financeiras para produção própria. Foi uma condição que colocou para assumir este desafio?
Sobretudo num ano tão especial como este, em que se comemoram os 150 anos do teatro, era fundamental que pudéssemos ter produção própria. Mas eu comecei por ser convidada, e aceitei, para vice-presidente da Fundação Inatel. Inicialmente nem tinha pensado assumir o Teatro da Trindade em específico, mas a atividade cultural da fundação, em geral, e que é muita. O teatro é a jóia da coroa, mas a atividade cultural é muito vasta – eu própria desconhecia a dimensão dele. A fundação é a maior representante nacional da cultura popular em todas as suas vertentes. Esta rede também merecia outros estímulos e outros meios, mas havemos de conseguir. E depois havia o teatro. Inicialmente pensei convidar alguém exterior, como no passado, mas o orçamento já não dava para isso. E é verdade que é um bocadinho irresistível dirigir este teatro – e não fazia sentido estar aqui sem ter minimamente meios para dar uma nova dinâmica ao teatro. Até porque o teatro é o melhor cartão-de-visita da fundação. O que espero é que se perceba que este dinamismo do Teatro da Trindade está no resto da ação da Fundação Inatel.
Mas portanto, concilia a direção do Teatro da Trindade, com a totalidade do pelouro cultural da fundação?
Sim. Felizmente, tanto de um lado como do outro tenho boas equipas. Não estou sozinha. E penso que, como os últimos anos foram muito difíceis para toda a gente, há uma vontade intrínseca de se voltar a ter atividade e o que encontrei foram equipas ansiosas de verem reconhecido o seu trabalho e de poderem dar uma outra visibilidade ao que tem sido o seu esforço constante, particularmente nestes anos mais difíceis. Ou seja, a tal resiliência também está nas pessoas da fundação e muito particularmente nesta área cultural.
Quais foram os seus critérios ao construir este ano de programação, que não só pretendia que marcasse o regresso do Teatro da Trindade à produção própria, como também deveria assinalar os seus 150 anos?
Era importante para mim começar o ano com uma produção própria. É evidente que, em termos de programação, a primeira questão era olhar para a história dos 150 anos do teatro e perceber como íamos comemorar a data. É quase impossível, num ano, comemorar 150. E depois queria comemorar a liberdade, queria comemorar a passagem do Ribeirinho pelo Trindade, queria evocar a Companhia de Ópera Portuguesa… Portanto, a primeira grande preocupação era: como arrancar um fio condutor. Mas o fio condutor acabou por se impor por ele próprio, no sentido em que andámos a ver as peças iniciais, do Romantismo Social, com que o teatro se inaugurou, e houve coisas que se foram impondo.
Como por exemplo?
O caráter muito português da programação e um espírito muito engraçado. Quando olhamos para a história do Trindade, o espírito com que Francisco Palha, o grande homem que abre este teatro, quis colocar aqui era de um teatro popular de qualidade, com uma programação alternativa. Na altura as duas grandes referências eram o Dona Maria e o São Carlos, o Trindade queria colocar-se entre estes dois. Se não fazia ópera, fazia opereta. Mergulhámos nos arquivos e fizemos um levantamento das peças que passaram por aqui nesta altura e os temas eram o banqueiro corrupto, os agiotas, os especuladores, as oito horas diárias de trabalho…
O Trindade foi sempre um teatro com essa carga social muito presente. Ainda agora, a peça que marca o arranque desta temporada foi “Nós, Trabalhadores”, de Vicente Alves do Ó, a propósito do centenário do Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social.
Essa carga social esteve na sua origem e ficou. Perante essa programação inicial de que estava a falar, este “Nós, Trabalhadores” até é uma peça levezinha. O que é engraçado na história do Trindade é que ele sempre teve um posicionamento de intervenção social. Não vou dizer que era um teatro do povo, embora com o Ribeirinho tenha tido muito isso e foi muito importante. Depois, durante o Estado Novo, a história do Ribeirinho enquanto encenador e diretor de companhia no Trindade é absolutamente fascinante porque era um homem que lidava com o antigo regime, mas que tinha as suas formas de resistência – é o homem que traz pela primeira vez ao Trindade o Beckettt. E que faz a Anne Frank, que tenho de fazer uma declaração de interesses, porque era representada pela minha mãe. Mas tudo isto contra a censura. Em todos estes anos houve uma coerência no Trindade: é uma casa popular, mas sempre com uma carga social muito grande. Portanto, a linha com que finalizámos a programação, não só da produção própria, mas também da parceria com os produtores independentes e privados foi esta. Vamos ter agora a “Avenida Q”, que vai ser muitíssimo divertido, é um musical, mas com uma carga social fortíssima, de olhar sobre os dias de hoje. É teatro que espelha o presente e se interroga com liberdade sobre esse presente. Depois também vamos ter a Beatriz Batarda e o Marco Martins – e ele tem uma grande experiência de trabalhos comunitários. Pedi-lhes que pensassem num espetáculo que não só juntasse as comemorações da Trindade, mas que também refletisse a missão da Fundação Inatel. O trabalho que farão será muito prolongado no tempo e interroga-se sobre a nova identidade de Lisboa no triângulo onde a fundação está presente.
É curioso que fale da Beatriz Batarda e do Marco Martins que têm colaborado com uma série de outros teatros, do Dona Maria II ao São Luiz. Há um novo dinamismo entre teatros?
Sim, sem dúvida. Não é novidade que, em tempos de crise, a atividade teatral cresce. Acho que há, neste momento, uma necessidade das pessoas em verem espetáculos ao vivo, para terem proximidade com o outro. Vivemos dominados por ecrãs, mas os ecrãs são muito solitários. Acho que esta subida de idas ao teatro também pode ser lida como uma necessidade das próprias pessoas em terem eventos onde estão juntas, onde combatem a solidão.
E também porque os próprios teatros se começaram a apresentar de outra maneira às pessoas? São cada vez mais espaços abertos a outras manifestações culturais e cada vez menos vacas sagradas.
Sim. Embora, mais uma vez, não nos vamos iludir: as pessoas no teatro trabalham em condições muito mais difíceis do que, por exemplo, quando eu comecei a trabalhar. Acho que é preciso ter isso em atenção. Quando assumi a direção do teatro e comecei a ver os orçamentos fiquei impressionada com a forma como o mercado, financeiramente, caiu. Os atores fazem milagres. Fazem novela de manhã, ensaiam um peça à tarde e representam outra peça à noite. Estou banza com a capacidade de entrega e trabalho. Estamos perante pessoas que chegam a trabalhar 16 ou 18 horas seguidas porque precisam. Antigamente podia fazer-se uma peça de teatro e depois estava-se três meses a pensar no que se iria fazer a seguir. A precariedade é grande e muito negativa, mas é verdade que as pessoas são resistentes e lutam e avançam. Devemos saudar o dinamismo mas não esquecendo que esse dinamismo tem saído do pelo de muita gente. Temos de respeitar e não esquecer isto.
Torna-se difícil esquecer quando, mesmo nesta fase em que há um sentimento mais positivo, encerra a Cornucópia.
Pois… Para mim, que aprendi a ver teatro e até mais do que isso, acho que a Cornucópia me ensinou a ler, o seu encerramento é algo mesmo doloroso. Quase como perder uma casa de família. Mas não é de espantar porque é uma espécie de modelo que não consegue resistir mais, é o tal lado da precariedade que já não permite que uma estrutura com a importância da Cornucópia resista. Ainda bem que os teatros nacionais e municipais e até, numa medida mais pequena, o Trindade, podem abrir portas para essas companhias. Porque as companhias já não conseguem ter estruturas fixas. Mas isso tem inconvenientes: há cada vez menos espaço de pesquisa e de invenção. Isto é grave, basta ver a quantidade de peças que são importadas. O trabalho que era feito pelas companhias fixas – pequenas ou grandes – de discussão e aprofundamento está a desaparecer. É curioso porque é assim que se apanham algumas incoerências ideológicas: cada vez mais, ao diminuírem o apoio às companhias, fizeram com que elas estivessem cada vez mais dependentes das estruturas do Estado. Porque nós temos, de facto, um grande problema: um setor privado que não arrisca nada na cultura. Sei que isto é politicamente incorreto, mas tem de ser denunciado para terem vergonha. A ideia de dinamizar o mercado mais pequeno não custa nada mas não acontece. Não há em Portugal cultura de arriscar e isso é terrível.
A longo prazo isso condenará todos os projetos ao mesmo fim.
O que isto faz é que, na prática, o Estado tem de assumir tudo.
No campo da cultura e das ideologias, a esquerda posiciona-se sempre como mais ‘amiga’ da cultura. No entanto, os dois últimos orçamentos, ambos da responsabilidade do governo liderado por António Costa, não foram propriamente mais generosos do que tinham sido os anteriores, do governo liderado por Passos Coelho. Foi uma desilusão?
Não tenho dúvida que gostaria que o orçamento para a cultura crescesse mais.
Continuamos longe do 1%.
Nunca me foquei nessa questão. Porquê 1%? O [Manuel Maria] Carrilho é que introduziu essa questão do 1% mas aí estávamos a três décimas. Mas claro que gostaria que houvesse mais dinheiro para a cultura, por outro lado, até pelo meu passado recente de deputada, não posso esquecer as dificuldades e os constrangimentos em que o país está. Mas este ano já subiu um bocadinho mais. Fiquei contente com a subida, mas ainda mais pela dinâmica, que denota o reconhecimento de uma maior importância do setor cultural. Porque é que a Irlanda, no pior da crise, não cortou na cultura? Porque o setor cultural é o mais maleável e o mais reativo que existe. E o que tem a maior capacidade de criar emprego, criar dinâmica e riqueza a vários níveis. Um euro investido na cultura dá, no mínimo, sete euros, direta e indiretamente. É importante criar dinâmicas e não deixar as coisas irem abaixo. O que se poupou na cultura, em termos de orçamento, é absolutamente ridículo, é uma gota de água, não representou nada. Mas os efeitos que teve para uma série de estruturas foram enormes. A questão aqui não é dizer se a esquerda é pela cultura e a direita é contra a cultura, o que me parece absurdo, o que acho é que a direita, na questão cultural, vive numa ilusão de uma realidade que não existe nem nunca existiu em Portugal: não há mercado cultural em Portugal.
E como se contraria isso?
Seria a primeira a apoiar uma legislação que forçasse, de facto, o poder privado a investir mais em cultura. A vários níveis, não é só investir num grande patrocínio e nas grandes instituições, mas na pequena atividade cultural, porque é essa que cria vida e dinâmica. Se o Estado tem de se retirar, tem de arranjar formas e mecanismos para que haja um estímulo para esse mercado, por muito pequenino que seja. Vemos isso em vários países. O que é que é preciso fazer para que as pessoas percebam que a cultura é um bom negócio? Estou a falar para a gente de direita, percebam isso.
Tem resposta para essa pergunta?
Acho que é preciso uma coisa mais profunda: orgulho de ser português. A desconfiança com a cultura tem a ver com uma espécie de insegurança nacional incompreensível. Isto ensina-se valorizando e reconhecendo o que é bom. Não indo sempre procurar, num passado mítico e irrealista, coisas que nunca existiram; tendo a capacidade de se olhar ao espelho e ver a nova sociedade portuguesa na sua diversidade e criatividade. Acho que a falta de empenho coletivo nas questões culturais ainda é uma herança cinzenta, uma espécie de medo e falta de confiança em si próprio.
Nos últimos anos os cargos de diretores dos teatros têm sido ocupado por pessoas que se distanciam da política e de discursos politizados. O seu currículo vai contra esta tendência.
Mas não tenho aqui no teatro nenhum discurso politizado. Assumo as escolhas que faço, absolutamente, mas não interfiro na criação. Não vou dizer ao Marco Martins o que tem de escrever ou ao João Perry como deve encenar. De modo nenhum estou a fazer uma programação ideológica ou política. Agora, acho que somos todos políticos, independentemente de termos ou não uma ação política. Podemo-nos envolver politicamente de formas muito diversas, não apenas partidária, no sentido em que a política é o que fazemos para o bem de todos.
Quando se senta no seu gabinete aqui no Teatro da Trindade não há nada da deputada que tenha vindo consigo?
Não. Essa ficou no parlamento. Agora, repito, eu ser política não ficou no parlamento. Deixei de ser a deputada eleita pelo PS, mas não deixei de ser um ser político. Mas não faço programação política. É não é nada difícil para mim destrinçar isto. Neste momento, a minha maior preocupação é trazer bons espetáculos e que encham a casa. É um discurso pragmático. O que me faz feliz é ver esta casa cheia, ver as pessoas voltarem a falar do Trindade e os artistas a pensarem no Trindade como um sítio onde podem e querem estar. Por exemplo, quero trazer música? Quero, então quero que seja música portuguesa. O Trindade colocar-se do lado dos artistas portugueses é político. Queria que fôssemos uma espécie de Olympia de Lisboa. Toda a nossa ação deve ir para além da nossa vontade pessoal. Isto aprendi no parlamento.
Como assim?
O grande choque do parlamento é que, quando chegamos lá temos imensas certezas e estamos muito firmes no nosso ponto de vista, mas quando somos confrontados sistematicamente com a necessidade de pensar em termos nacionais, tudo ganha outra dimensão.
É perceber que o pequeno interesse choca com o grande interesse?
Evidente. O que eu faço, por muito pequeno que seja, tem impacto para além de mim. Esta é uma consciência que todos deveríamos ter, sobretudo quando estamos numa posição de chefia. O que eu faço tem um impacto muito para além de mim.
Imagina-se a regressar ao Parlamento?
Sim, qualquer dia. Não tenho pensado nisso, mas gostei muito de estar no Parlamento. Mas neste momento não tenho tempo para pensar nisso, este cargo dura até 2019.
E também lhe é fácil separar as águas entre a diretora de teatro e a encenadora, realizadora e atriz?
Não está nos meus planos encenar aqui, e acho que não o devo fazer. Posso colaborar com alguns encenadores e isso dá-me um grande gozo, como foi agora com o “Nós, Trabalhadores”. Mas não digo que nunca o farei.
Mas sente saudades das suas ‘outras vidas’?
De atriz, menos; mas da realizadora sinto saudades. Fiz um filme há uns dois anos, mas ainda não o consegui mostrar em Portugal. (risos) Ainda estava no parlamento e, durante o verão, fiz uma encomenda para o canal francês arte. Pode ser que faça um filme sobre o próprio Teatro da Trindade.
Há pouco disse que a sua mãe representou aqui no Teatro da Trindade…
Sim, a minha mãe fez aqui a Anne Frank. Ela tinha na altura uns 15 anos, a peça estava proibida a menores de 17, portanto ela não podia ver a sua própria peça. Aliás, nós devemos a nossa existência a este teatro. (risos) Foi aqui que o meu pai viu a minha mãe pela primeira vez. Estava longe de imaginar que eu um dia estaria aqui a trabalhar.