Entrevista originalmente publicada em julho de 2013
Para o antigo senador do Partido Socialista e actual líder da Frente de Esquerda, François Hollande "roubou o Partido Socialista" a muitos franceses e tornou-o uma coisa que serve a direita e que é preciso derrotar. O mesmo aconteceu em Itália, em que muitas gerações se viram desapossadas do seu partido, num processo que transformou o PCI em DS (Democracia de Esquerda) e esta em Partido Democrático. Aconselha os seus camaradas do Bloco e do PCP a não acreditar no canto das sereias e a ter como objectivo ultrapassar o PS: "A única forma de o mover para a esquerda." Este licenciado em Filosofia e antigo ministro da Educação é um homem torrencial de uma inteligência viva. A entrevista começou, antes de qualquer pergunta ser feita, pela palavra "crise".
A palavra "crise" é completamente inadaptada. Não penso que as nossas sociedades estejam numa crise. A ideia de crise dá a entender que é possível regressar à situação que tínhamos antes. Ora aquilo que se produziu não permite que regressemos ao ponto que estávamos antes da "crise".
Não partilha o conceito marxista de que vivemos uma crise do capitalismo?
Eu proponho um outro conceito, a ideia de bifurcação. Fui buscar o conceito às ciências duras. Ele pressupõe um sistema dinâmico, que é explicado por uma série de parâmetros e são estes que definem a dinâmica do sistema. O conceito de bifurcação é mais rico que o conceito de crise, porque tem em conta a dinâmica do sistema e liberta-nos de todo o tipo de explicações sofisticadas, como as que recorrem à dialéctica, que sempre me pareceram metafísicas, como a ideia da transformação da quantidade em qualidade, etc. Podemos observar na história muitas bifurcações no passado, que na altura escaparam ao nosso olhar, porque tudo o que conseguimos perceber é o fim do antigo. Nos próprios fundamentos da vida humana encontramos bifurcações. O facto de os chineses ultrapassarem os Estados Unidos da América automaticamente sem ser alterado nenhum parâmetro conduz a uma bifurcação maior na história económica: a moeda chinesa torna-se dominante, substitui o dólar e recondu-la ao seu valor real, com todas as consequências que isso acarreta.
Isso parece uma transformação dialéctica de quantidade em qualidade [risos]… Mas esse processo é determinístico ou tem lugar nele o agenciamento humano?
É um determinismo probabilístico, não é linear, não considera que as fases se sucedem, como no antigo determinismo. O determinismo que Marx apresentava na sua visão da história, tal como as mais importantes ciências afirmavam na época, tem uma visão linear do tempo. O seu determinismo era o de Simon Laplace, que dizia que se conhecêssemos a posição e a velocidade de um objecto saberíamos sempre o seu lugar no espaço. Poderíamos, num momento dado, revelar todas as posições anteriores e sobretudo todas as posições posteriores desse corpo no espaço. Ora o marxismo contemporâneo é sobretudo capaz de explicar depois e nunca de prever, porque há parâmetros que lhe escapam, como o ritmo e o tempo. Se lermos textos marxistas eles têm razão quanto ao que se vai passar, mas tanto pode ser em oito dias como em 20 anos. Esta dificuldade a dominar a dimensão do tempo explica essa incapacidade. Há pouco falava das implicações na esfera financeira, mas o lugar onde esta não linearidade do tempo é mais visível é a nível do ecossistema. O aquecimento dos oceanos não será feito docemente, nem o aquecimento global será sempre progressivo. Aqui também estamos numa bifurcação, continuamos a falar num ecossistema, mas não vai ser o mesmo que no início.
Mesmo no ecossistema há acção dos homens. Como é possível que os seres humanos consigam criar uma nova bifurcação política?
Há pelos menos dois caminhos: o primeiro é que não tenhamos escolha. O sistema bloqueia-se. É aquilo que acontece a maioria das vezes nas revoluções contemporâneas, não houve um partido revolucionário e um programa revolucionário preparando laboriosamente o dia da revolta, apareceu um acontecimento que pareceu espontâneo. A raiz das pessoas é conservadora. Quais são os parâmetros de partida desta bifurcação? Quero poder alimentar-me, quero poder deslocar-me para o trabalho, quero sentir-me útil, as coisas elementares que tivemos até agora, e de repente não podemos tê-las. De repente, o sistema bloqueia-se com aquilo a que chamo um acontecimento fortuito e inopinado. Um tipo não quer continuar a pagar o seu aluguer num mercado na Tunísia porque está sempre a ser aumentado, é o terceiro que se suicida, mas é aquele que vai desencadear os acontecimentos. Na Venezuela é o aumento do bilhete dos autocarros, no Brasil, observe-se a ironia da situação, é também o au- mento das tarifas de transportes. Quero explicar por que razão é fundamental esta questão, mas primeiro quero regressar à ideia de bifurcações. Perguntou-me como fazemos para passar de uma situação para outra. Para conhecer isso é preciso ter os elementos das bifurcações que têm que ver com a condição humana, uma espécie de bifurcação antropológica, em primeiro lugar o número: nós somos 7 mil milhões no planeta, quando eu nasci não havia mais de 2 mil milhões, a humanidade mais que triplicou. A educação: mais de 80% dos seres humanos sabem escrever, estão portanto libertados da tradição oral. Mais de 60% das mulheres do mundo têm acesso a um meio de contracepção. Jamais a humanidade sofreu tais alterações fundamentais, e agora, para regressar ao meu bilhete de autocarro, a urbanização do mundo, quer dizer que mais de 80% da população mundial vive em cidades e não no estado de ser humano perdido na natureza. Quer dizer que esta situação urbana é quase uma espécie de socialismo automático, mesmo que sofras profundas desigualdades económicas, daqui ao centro da cidade todos passamos pelas mesmas ruas e rotundas, sejamos ricos sejamos pobres. Há portanto partes da tua vida que são feitas de uma forma comum. Podem alterar-se, claro: em São Paulo os muito ricos viajam de helicóptero. Muitos desses acontecimentos, que desencadeiam revoltas, resultam do facto de sermos voltados de cara para uma parede, estejamos bem ou mal, contentes ou descontentes, somos obrigados a arranjar uma solução. Em Barcelona ou na Argentina, no início da crise houve pequenos patrões que pegaram nos filhos e em dinheiro e abandonaram as fábricas. Os operários que lá estavam não eram revolucionários e nunca devem ter lido um texto de Marx sobre a propriedade colectiva dos meios de produção, mas foram obrigados a continuar a produzir para responder às encomendas e receber o seu salário. Dessa forma decidiram colectivamente ocupar a fábrica e continuar, ninguém lhes deu a ordem de formarem um soviete. É também um movimento que resulta do nível de educação, que se viu elevado, da urbanização das populações e da feminização, que cria condições para que um acontecimento desencadeie um processo em que as pessoas queiram decidir. A estes processos chamo a revolução cidadã. O conceito é diferente do do passado, em que se atribuía à partida um objectivo programático e era chamada revolução socialista. Defendo que a revolução cidadã tem como objecto inicial e dinâmica interna a vontade dos cidadãos que querem decidir.
O sujeito dessa revolução são todos os cidadãos ou há alguma partição ou divisão, como as das classes?
Admito que há aí uma ligação, mas vou dizer o que penso francamente: há camaradas que só imaginam a classe social na fábrica. Quando o mesmo trabalhador está na rua a defender os transportes públicos acessíveis, o direito à habitação ou a qualidade da água, diriam que ele já não é um trabalhador. Mas claro que continua a ser um trabalhador. E é justamente porque é um trabalhador e um assalariado que defende um salário digno e tem uma exigência sobre a existência e a qualidade dos serviços públicos. Penso que há uma falsa oposição entre o conceito de cidadão e de proletário. Esta falsa oposição apenas revela uma certa paralisia mental e não uma situação de facto. O cidadão é maioritariamente um assalariado e um homem urbano, e metade são mulheres. Todos expressam reivindicações que põem em causa todo o sistema social. Cabe às mulheres, que na maior parte cuidam sozinhas das crianças, fazer as reivindicações mais duras. Umas das características do início das revoluções cidadãs é que a maior parte das vezes elas se fazem com uma grande participação das mulheres. Uma revolução cidadã não é uma versão atenuada, do ponto vista político, económico e social, da revolução socialista. Não posso deixar de mencionar que aquilo que aconteceu na Turquia foi desencadeado por um projecto imobiliário num jardim na Praça Taksim, em Istambul. Não se ouviu falar de uma única fábrica em greve. E não é por isso que se pode dizer que as pessoas que se manifestavam eram um bando de grande burgueses. Claro que não. A sua questão lembra-me aquilo que li das discussões dos meus camaradas brasileiros que se interrogam sobre a natureza do movimento de revolução cidadã a que assistem nas ruas do Brasil. Como pensam de uma forma linear, não compreendem que a situação é resultado das políticas dos governos de esquerda, que ao retirarem parte da população da miséria a colocaram no campo da cidadania. A revolução cidadã tem uma característica de revolução permanente. Há gente que precisa das fábricas para poder afiançar as características revolucionárias de um movimento, quando a dimensão revolucionária de um movimento dá-se por si mesmo e pelas suas reivindicações. Não percebem que quando há milhões de pessoas que exigem nas ruas melhores serviços públicos e menos corrupção, isso não é um programa de direita nem um programa liberal. Se pensamos em termos de revolução cidadã temos uma boa bússola para governar de outra maneira, para aprofundar uma partilha mais radical de riqueza no país, Dilma Rousseff não a pode realizar sozinha, deve apoiar-se neste movimento. Não deve limitar-se a convocar gente para falar com ela no quadro actual, mas convocar uma Assembleia Constituinte e eleger deputados para decidirem as regras do jogo.
Em Portugal temos um governo de direita e em França um governo do Partido Socialista faz a mesma política? Estamos na mesma situação?
As condições objectivas são as mesmas. Os dois governos fazem as mesmas políticas em resultado de uma vontade predadora do capital financeiro que entrou na Europa pela Grécia devido à capitulação da Europa. O que aconteceu nesse momento na Grécia foi um acontecimento mundial, mas como é normal não nos apercebemos logo: a existência precede a consciência. Nesse dia em que o capital financeiro entrou na Grécia, e na União Europeia, capitulou no local aquele que na altura era presidente da Internacional Socialista (IS). A explosão da IS tem essa data; mostrou-se incapaz de impedir a predação do capital financeiro. No momento em que isto aconteceu havia três primeiro-ministros socialistas na Europa: Sócrates, Zapatero e Papandreou, que podiam ter pelo menos organizado alguma resistência por parte do Sul da Europa, com ajuda de grandes partidos, como o Partido Socialista Francês e os Democratas italianos. Mas eles capitularam.
Mas não se pode dizer que essa capitulação tinha ocorrido anos antes, com a terceira via de Blair e a adopção de agendas neoliberais pelos partidos da Internacional Socialista?
Absolutamente, foi a consequência natural das políticas, ditas de modernização, de Blair, Schröder, Papandreou e Clinton. As pessoas não percebiam qual era a mudança que lhes propunham, essa gente dizia: "É a mesma coisa mas em moderno", quando era completamente diferente. A consequência prática desta bifurcação do movimento socialista internacional, eu estava lá e estive entre aqueles que resistiram a esta evolução, foi que quando a Grécia foi atacada pelo capital financeiro não sabiam o que fazer, achavam que os mercados eram inelutáveis, como se fosse uma obrigação ditada pela ordem natural das coisas. A política europeia aparece como uma conjugação dos interesses do capital financeiro com um governo específico da Alemanha, o da CDU/CSU, que é resultante da situação da Alemanha, da sua história, da reunificação da Alemanha, junto com um parâmetro que é o envelhecimento da população da Alemanha: a CDU/CSU representa uma população de reformados que tem necessidade de um euro forte e de grandes pagamentos de dividendos para manter as suas reformas. A conjugação do que quer o capital financeiro com os interesses da direita alemã deu um enorme poder a esta política.
Mas é diferente do governo de Hollande?
Portugal e França vivem uma mesma situação objectiva, mas a situação subjectiva não é igual: nós temos um governo que se afirma de esquerda, e muita gente votou nele contra Sarkozy. Mas houve a emergência da Frente de Esquerda num nível nunca visto em muitas décadas. É a primeira vez, desde 1981, que um candidato à esquerda do Partido Socialista faz um resultado com dois dígitos. Isto obrigou o candidato do PS a virar à esquerda o seu discurso usando elementos consideráveis do nosso próprio discurso.
E isso teve algum efeito nessa eleição de Hollande na política francesa?
Em grande parte não passou de apropriação de discurso. Os portugueses podem pensar que votando na social- -democracia garantem uma alternativa. Pessoalmente desaconselharia-lhes essa ilusão. A única maneira de fazer mexer a social-democracia é a outra esquerda ultrapassá-la nas urnas. Este é o conselho que dou aos meus camaradas do Bloco de Esquerda e do PCP. Quando os ultrapassarem são vocês que têm a responsabilidade de unir e de fazer um programa que possa juntar a maioria da população, porque é necessário ter do nosso lado a maioria das pessoas. Temos a convicção em França de que a única maneira de fazer mexer os socialistas para a esquerda é ultrapassá-los nas eleições. Em França está-se a verificar uma homogenização da direita. Toda a gente ficou surpreendida no estrangeiro com as enormes manifestações de direita contra o casamento gay, no país da Revolução Francesa, das liberdades, etc., mas em França sempre houve um forte campo contra a igualdade. Ao mesmo tempo que a direita se reforça, o governo abusando da palavra "esquerda", descredibiliza a palavra nas massas e a ideia mesma da esquerda. Primeiro divide, porque sem os nossos 4 milhões de votos Sarkozy não teria sido vencido: a derrota foi por um milhão de votos. Fomos nós que demos a vitória a Hollande. Em qualquer regime democrático do mundo, aquele que ganhou ganhou, mas leva em conta os votos que o ajudaram a triunfar. Aqui, no momento preciso em que ele ganhou, divorciou-se daqueles que o elegeram, e o divórcio toma a forma da rejeição brutal e violenta da Frente de Esquerda. Depois dividiu os sindicatos para negociar uma revisão das leis do trabalho com o patronato. A esquerda está enfraquecida pela política do governo, enquanto a direita se reforçou à volta da extrema-direita. Ela cresce propondo as soluções autoritárias e xenófobas que lhe servem para arranjar bodes expiatórios para o papel dos banqueiros e do capital financeiro. A estratégia de combate político não pode ser senão tentar unificar todos os sectores que se opõem à política de austeridade em torno da Frente de Esquerda para conseguirmos ultrapassar os socialistas. É um combate permanente, esperamos brevemente ver os ecologistas juntarem-se a nós contra estas políticas de austeridade. A questão-chave desta luta são as políticas de austeridade.
Há um fenómeno em que o descontentamento com as políticas de austeridade reforça mais a extrema-direita e os movimentos populistas que partidos como a Frente de Esquerda. Qual é a razão desse falhanço da esquerda?
É injusto dizer que há um falhanço.
Porquê?
Porque são muito difíceis as condições em que nos batemos. É preciso ter em conta o nosso ponto de partida. A relação de um partido com um povo constrói-se no tempo e com a experiência. O que se passa é que aquilo que se chama esquerda tem um produto tóxico, e este produto tóxico é a social-democracia.
Temos um grande debate em Portugal em relação ao euro. Há gente de esquerda que afirma que a moeda única só serve a Alemanha e que impede o desenvolvimento, o emprego e ter uma política económica independente e há gente que afirma que a questão fundamental é a dívida soberana e uma outra política europeia. Acha que é possível uma esquerda europeia com o euro?
É uma realidade que pode desaparecer em dez dias. Basta Portugal não pagar e temos uma crise que pode levar ao fim da moeda única. Sobre isso podemos apelar ao exemplo de Diógenes quando vários filósofos discutiam há horas se o real existia. Diógenes arranja um tronco de árvore, chega e começa a bater em todos e diz: "É este o meu argumento." Podemos discutir o euro durante horas, mas enquanto o fazemos ele pode pura e simplesmente afundar-se e por uma razão não prevista. O primeiro-ministro de Portugal tem um acidente de automóvel e durante umas horas está incapaz, os mercados reagem e a moeda implode. Isto quer dizer uma coisa: este euro está condenado, porque uma moeda que depende de um acaso para sobreviver não é uma moeda estável. Para acabar com a crise, em várias ocasiões a Europa tomou medidas que não estavam previstas nos tratados: por exemplo, cortar Chipre de todas as transacções internacionais. Diziam-nos que isso não era possível, para fazer uma política de esquerda, mas para fazer uma política de direita parece que é possível. A situação económica encontra-se ainda mais fragilizada por uma política que desencadeia crises orçamentais. Em Portugal viu-se pela primeira vez o enorme cinismo do capital financeiro e dos mercados: as agências de rating diziam que é preciso que Portugal faça austeridade, para forçar isso baixam-lhe a cotação, e quando leva a cabo a austeridade exigida baixam-lha porque como a fez vai ficar em más condições económicas. Um total cinismo. Resumindo, este euro não tem condições para se aguentar. Agora resta saber se é conveniente que se aguente. Para o seu futuro é determinante quem vai estar no poder na Europa, quem vai poder fazer um contraponto à política alemã. É completamente diferente um continente em que, por exemplo, em França, na Grécia e em Portugal possam ser eleitos governos verdadeiramente de esquerda.