Até meados da primeira década dos anos zero, as secções de comida das livrarias portuguesas limitavam-se a uma ou duas prateleiras e a quatro ou cinco nomes estrangeiros e dois ou três portugueses. Os poucos livros que se conseguiam encontrar ou eram pesados volumes para preencher à laia de bibelot os armários de cozinha ou então livros dos poucos cozinheiros que iam aparecendo na televisão, com mais fotografias e introspecção pateta do que receitas úteis. Era um universo sexista e nitidamente vocacionado para uma concepção conservadora da cozinha ou, pior, para uma versão disso em receitas de vinte minutos, cujo objectivo nunca foi romper com a imposição machista da dona-de-casa mas antes subsumi-la também às necessidades de rapidez e eficácia, esses pretextos com que os anos oitenta e noventa nos ajudaram a destruir o mundo.
Na televisão portuguesa o panorama era correspondente, limitando-se os programas de cozinha a um horário responsavelmente próximo do das grandes refeições e a um formato popularizado e repetido à exaustão durante décadas. E mesmo esses programas, com toda a rigidez do formato de sequências de receitas, pareciam ser já menos sobre comida e mais sobre os descuidos e a concupiscência da cozinheira (Nigella Lawson) ou sobre a experiência de pôr um rato de laboratório com o bucho cheio de ritalina em frente as uns quantos tachos e ver o que é que acontece (Jamie Oliver).
Mas falemos um pouco sobre comida e sobre as suas duas funções, a nutrição e o prazer. À primeira dessas dimensões chamamos alimentação, à segunda gastronomia. Comer esteve sempre na moda, a gastronomia é que não. A gastronomia é o privilégio de não ter que pensar na comida enquanto alimentação. E isso até há bem pouco tempo era um luxo que só estava ao acesso das elites. Foi uma espécie de revolução gastronómica o que permitiu a democratização do puro prazer com a comida, essa revolução, mesmo não tendo aí origem, foi potenciada pelo advento dos programas de cozinha na televisão, mais ou menos após a Segunda Grande Guerra. Como nunca antes, os universos paralelos da cozinha dos grandes restaurantes e da cozinha de casa iniciaram o seu diálogo. E ninguém melhor deu veículo a este diálogo do que as primeiras embaixadoras da grande cozinha francesa em terras anglófonas, a Julia Child e a Fanny Cradock. Foram estes dois colossos que inauguraram o filão de programas sobre comida que hoje em dia povoam a televisão, até mesmo nos mais inusitados horários. Foi no desenvolvimento do seu legado que a comida começou a abandonar o seu âmbito funcionalista – e o seu horário pré-almoço – para se entregar ao simples prazer – e ao horário hedonista por excelência, depois do jantar.
E de repente – não cabe no espírito deste texto o deslindar de uma causa, nem um excesso de precisão cronológica –, a comida apropriou-se-nos dos ecrãs, das estantes e, principalmente, da casa. Aprendemos mais sobre a cozinha portuguesa, ainda que a espaços tenhamos precisado que fosse um sérvio a fazê-lo, ganhámos mundo, mesmo que só através do palato e vimos surgir alguns dos melhores restaurantes que já cozinharam em Portugal, como o Bel Canto reinventado pelo José Avillez ou o Loco do Alexandre Silva. Mas também passámos a saber de cor o nome de dezenas de chefs que não nos inibimos de qualificar apesar de nunca lhes termos experimento sequer um amuse-bouche, a discutir os benefícios do sous vide, de selar a carne, da cozinha a baixa-temperatura e dos condimentos asiáticos. Permitimos que durante anos uma revista decidisse por nós quais são os melhores restaurantes italianos, japoneses, portugueses ou as melhores hamburgarias (transformámos isto numa palavra que é suposto levarmos a sério), num sem fim de listagens que raramente nos conseguiam provar ser úteis ou reais. Somámos aos significados de tasca um sentido incoerentemente higiénico e esterilizado, começámos a falar de restaurantes de luxo como se lá tivéssemos estado ontem só porque os vimos na televisão e sentados à mesa estavam pessoas como nós. Foram tempos óptimos para alguns chefs mais empreendedores, para os empresários da restauração, essa maravilhosa casta de doppelgängers do Olivier, para os cozinheiros de trazer por casa, entre os quais me incluo, aproveitando este momento do texto para o meu próprio acto de contricção já há muito devido. Transformámos os supermercados portugueses em lugares nos quais se consegue arranjar sem problemas uma garrafa de mirin, um pacote de agar agar ou três centenas de condimentos ridículos para pôr no gin, mas em que é complicado desencantar um molho de beldroegas.
Não foi, obviamente, um fenómeno português. Um pouco por todo esse unicórnio geográfico que é o mundo ocidental, pudemos observar movimentos semelhantes, uns anteriores e outros posteriores ao nosso, mas filhos do mesmo misto de alguma democratização e demasiado mercantilismo. Foi ou é uma época apenas, que um dia há-de acabar como o mundo no poema The Hollow Men de T.S. Eliot, não com uma explosão mas com um suspirozinho, porque, lá está, durou o suficiente para que o sonho se começasse a transformar num pesadelo.
E, tal como todas as épocas, há nomes de gente capazes de capturar num corpo apenas toda a esquizofrenia implícita. Marco Pierre White, que costumava ser um chef – que diabo, um dos melhores mesmo – e que agora é apenas proprietário de restaurantes e famoso porque em tempos foi famoso e tinha punhos para agarrar com vitalidade e justiça a fama, é um desses nomes. O Diabo na Cozinha (Quetzal Editores) é a “autobiografia” de Marco (entre aspas porque teve a ajuda de um escritor-fantasma) cuja capa nos promete sexo, dor, loucura e arte, e até nos dá tudo isso, só que em doses muito pequenas quando comparadas com as torrentes de fel, ajustes-de-contas e ressabiamentos que a cada capítulo espreitam. A principal vítima dessas vinganças é outro dos emblemas de quão tonta esta época daqui a uns tempos nos vai parecer, Gordon Ramsey, antigo aprendiz, companheiro de armas e uma imitação loira do mestre, cujos gritos estão para a cozinha como a Avril Lavigne está para o punk-rock.
Marco Pierre White é famoso, entre muitas outras coisas, por ter sido o primeiro chef inglês a ganhar três estrelas Michelin e por o ter feito mais novo que qualquer outro chef. Foi também o primeiro a “lembrar-se” de as devolver, o que terá sido um momento central na vida do cozinheiro mas que, a julgar pelos parágrafos que a isso dedica, mal escapa ao mesmo aparato multi-justificador em que arruma quase tudo, desde os sucessos ao temperamento insuportável, a perda da mãe de origem italiana quando White ainda era muito novo, parecendo mais uma piada que um acto de verdadeira rebeldia contra uma lógica de avaliação de restaurantes de um guia que saberia, muito melhor que Marco, adaptar-se aos novos tempos. Marco foi e deve ser recordado como dos melhores praticantes das artes culinárias, um perfeito herdeiro de um Paul Bocuse ou, mais próximo, de um Raymond Blanc, o verdadeiro padrinho da cozinha moderna e a maior influência na vida profissional de Marco Pierre White. Mas para isso pouco contribui este livro, cujo principal e implacável defeito é servir perfeitamente o Marco Pierre White que hoje conhecemos, mas que é uma fraca aproximação ao Marco de outros tempos, principalmente ao daquela famosa fotografia a preto e branco, com um cigarro nos beiços, o cabelo desgrenhado e uma cara de quem é capaz de nos mandar para a puta que nos pariu com a melhor pasta que já experimentámos. Em termos de biografia/memória gastronómica fica muito aquém de Anthony Bourdain e do seu Cozinha Confidencial (Livros d'Hoje) ou daquela que é a meu ver a melhor memória gastronómica alguma vez escrita, o incrível Blood, Bones & Butter, de Gabrielle Hamilton. Não podemos também deixar de reparar que esta edição portuguesa optou por escolher o título da edição norte-americana que, para fugir à sensibilidade excessiva do público estadunidense, preferiu um Devil in the Kitchen ao invés do original White Slave, um título que, temos de admiti-lo, não traria muitos amigos ao livro em 2006, quando foi originalmente publicado.