Um homem e o seu piano. O piano que o pai comprou aos vizinhos do lado quando o filho tinha apenas três anos. O piano que deu – a esse filho – a música e lhe conhece os segredos. O piano que serve de porto seguro quando nada mais sobra. É sentado a esse piano, numa sala vazia, que Sampha Sisay entoa “(No One Knows Me) Like The Piano”, um desespero contido na voz de quem se despediu mas não quer dizer adeus.
“Process” – primeiro LP do músico inglês de 28 anos que vem a Portugal em junho, ao NOS Primavera Sound – é um álbum marcado pela dor. Mas no qual Sampha, como que num exercício extracorpóreo, se analisa e aos seus sentimentos, de fora. Porque lá dentro dói demais. Há traumas por ultrapassar, mas há nestas palavras a vontade expressa de os ultrapassar. De vencer a dor, nunca a contornando. Um processo que não termina. “O processo passa por falar das coisas, deixá-las sair do meu peito e da minha cabeça para assim poder avançar. Podia falar com alguém ou então fazer música. Tudo para não paralisar”, disse em entrevista ao i, com a voz marcada por uma constipação. “A música tornou-se um instrumento útil para aliviar a dor, como uma terapia.”
Alguns dos temas deste “Process” foram escritos em 2013, altura em que Sampha regressou à sua vida e a si, depois de uma longa temporada a cuidar da mãe que se debatia com um cancro, entretanto em remissão. Mas a vida apanhou o músico na curva. O cancro da mãe regressou, fulminante, terminal, inevitável. De East London, Sampha mudou-se para South London, de sua casa para a da mãe. Para estar lá. Até ao fim. Enquanto vivia o sofrimento da mãe, reencontrou no piano um confessionário para a dor que lhe rasgava o peito, ao ver a mãe abandonar a vida, abandoná-lo. Antes, em 1998, ainda criança, já tinha visto o seu pai morrer, também com cancro.
A família é, de resto, central na vida de Sampha, influência do ADN da Serra Leoa, de onde os pais são naturais, apesar de o músico e os seus quatro irmãos já terem crescido em Londres. Mas cresceram com o que Sampha considera um sentido de família “muito característico da Serra Leoa. A família é um sentimento que me acompanha sempre, esteja onde estiver.”
Foi este sentimento que o fez mudar toda a sua vida para estar ao lado da mãe. E que antes o tinha feito estar ao lado do irmão, que sofreu um AVC e ficou fisicamente diminuído, tendo Sampha assumido a responsabilidade de tomar conta dele a partir desse momento. “Mas quando me mudei para casa da minha mãe deixei de estar tanto com ele.” Por um lado tinha a mãe para cuidar, por outro o irmão, por outro a carreira começava a afirmar-se. Sobrou a culpa.
Essa culpa de não ter estado tanto como gostaria – porque afinal nunca estamos – faz também parte deste “Process”. Todas estas batalhas travadas com a vida foram devolvidas em forma de música: “Todas as lutas que tive e a responsabilidade crescente permitiram-me perceber a complexidade da vida. E a música tornou-se uma forma de aliviar a tensão dessa mesma vida.” A tal terapia.
“Process” é então um álbum luminoso na forma, mas obscuro nos conteúdos. “Acho que é um álbum onde enterrei as minhas emoções. Por um lado é colorido, animado e cheio de energias, mas em termos das letras é um álbum de dor, de questionamento e que explora algo mau e difícil. Não sei bem onde fico porque, para mim, a música também deve ser feliz, mas as minhas letras não transparecem isso.”
Colaborador de luxo
Quando começou a fazer música, Sampha assumiu-se como MC e produtor de grime, usando o nome Kid Nova, que roubou a uma personagem da Marvel. Foi sob este alterego que, em 2007, o trabalho de Sampha chegou, através da plataforma MySpace, aos ouvidos de Kwes, que por sua vez a enviou a um amigo que trabalhava na XL, ligada à Young Turks. Foi a editora londrina que acabou por lançar dois EPs do músico – “Sundanza” (2010) e “Dual” (2013). E foi também através da editora que o rapper Drake o abordou para uma colaboração.
A partir daqui, a voz melancólica mas afirmativa do músico e compositor marcou o trabalho de artistas como Beyoncé, Kanye West, Frank Ocean, SBTRKT, Koreless, FKA Twigs, Jessie Ware. Um currículo de luxo. “Todos aqueles com quem trabalhei me influenciaram. Aliás, acima de tudo, desafiaram-me para que eu fosse capaz de me desafiar a mim próprio. Sentir que nos valorizam é muito bom.”
Acostumado a ser este braço direito, na sombra, Sampha receava não ter assim tanto para dizer em nome próprio. Teve de contrariar esta tendência de segundo plano para lançar agora este “Process”. “É estranho ver as coisas concretizarem-se, tornarem-se realidade. A verdade é que ainda me parece um sonho. Não sabia que podia mesmo acontecer”, diz, com a humildade que todos os artistas com quem já colaborou lhe apontam. Apesar do entusiasmo, Sampha reconhece que é também assustador ter finalmente um álbum em nome próprio. Ainda mais porque é muito real tudo o que ali está. “O mundo vai poder ouvir o mais intimo de mim.” Como se fosse outra vez o menino de três anos que vê o pai comprar um piano aos vizinhos do lado.