“Onde está a tua misericórdia?”, questionavam dezenas de cartazes, espalhados pelas paredes de alguns bairros de Roma próximos do Vaticano, afixados na noite de sexta-feira por alguém de quem se desconhece, para já, o nome. Mas se a identidade dos autores ainda é desconhecida, a do destinatário não deixa dúvidas. Trata-se do Papa Francisco, denominado como “France”, conforme atestava a mensagem redigida nos cartazes, colocada por baixo de uma fotografia do chefe da Igreja Católica com ar encabulado.
Os anúncios foram entretanto tapados, durante o fim de semana, e carimbados como “publicidade ilegal”, mas o texto neles contido, em parte redigido no dialeto da capital italiana, sugere que podemos estar a assistir ao mais recente episódio de uma disputa interna, apimentada nos últimos meses, entre os que defendem um posicionamento mais conservador e os que promovem uma maior abertura da Igreja, como é o caso do Papa argentino. “France, colocaste congregações sob supervisão, afastaste padres, decapitaste a Ordem de Malta e os Franciscanos da Imaculada, ignoraste cardeais”, pode ler-se nos cartazes, antes da referida pergunta provocatória, identificada no início do texto.
O papado de Francisco tem tido uma aceitação relativamente positiva por parte da classe política e social, nomeadamente pelo seu papel de líder do movimento de modernização da Igreja Católica e pela promoção de uma visão mais progressista, pelo que as críticas não são muito recorrentes, principalmente vindas de fora do meio eclesiástico. Mas esse posicionamento do Papa não agrada, naturalmente, a todos, e dentro da Igreja há quem se oponha veementemente às suas ideias. Esta realidade, aliada ao conteúdo dos cartazes, parece indicar que quem quer que tenha estado envolvido na sua afixação é apologista da ala conservadora da Igreja e conhecedor das divergências internas no seu seio, resultantes do desempenho do seu atual líder. A mensagem de apoio, publicada no sábado, no Twitter, pelo padre jesuíta Antonio Spadaro, editor do jornal eclesiástico “La Civiltà Cattolica” e amigo chegado de Francisco, reforça essa sugestão: “[A afixação dos cartazes] é sinal de que ele (…) tem causado MUITO incómodo.”.
Desavenças com a Ordem de Malta
A mais recente polémica que envolveu o Papa e a Ordem Soberana e Militar de Malta – a antiga ordem católica de cavaleiros, criada no século xi, agora transformada em instituição de caridade à escala mundial, embora gozando de alguns privilégios próprios de um Estado, particularmente no que toca à representação diplomática – está mesmo no topo das explicações sugeridas sobre a origem dos protestos silenciosos e sem rosto nas ruas de Roma, até porque estes apareceram a escassas horas do anúncio oficial do “delegado especial”, apontado pelo Vaticano, para tomar o lugar do grão-mestre demissionário, o inglês Matthew Festing, enquanto a ordem não elege um novo líder.
O caso é confuso, fez correr muita tinta nos últimos meses e conheceu o seu auge no final de janeiro. Tudo começou com o afastamento de Albrecht von Boeselager por Festing, em dezembro do ano passado, justificado pelo grão-mestre pelo facto de terem sido distribuídos preservativos na Birmânia, no âmbito de um programa liderado pelo alemão, algo que contrasta com a doutrina professada pelos cavaleiros de Malta, adversos àquele meio contracetivo. Boeselager garantiu que não sabia da distribuição e apressou-se a suspendê-la, mal teve conhecimento da mesma. Para além disso, recusou demitir-se e apelou à intervenção do chefe da Igreja Católica. O Papa nomeou então um comité especial para investigar o sucedido, mas contou com a oposição de Festing, que se abdicou de cooperar, alegando tratar-se de um assunto de “soberania interna”. O braço-de-ferro prolongou-se até ao final do mês passado e terminou com a visita do líder máximo da Ordem de Malta ao Vaticano e a consequente apresentação da sua demissão, compelido por Francisco, numa tomada de posição sem precedentes – ilustrada como uma verdadeira “decapitação” da ordem, tal como sugerem os cartazes.
No meio do enredo sugerido há que contar ainda com a participação de Raymond Burke – o padre norte-americano que ficou conhecido pelos elogios ao programa pró-vida do presidente Donald Trump –, um dos principais representantes da oposição conservadora ao Papa Francisco e um dos quatro cardeais que endereçou uma carta aberta, em novembro, questionando o posicionamento do pontífice na defesa da interpretação feita por cada padre no que toca à autorização dada aos divorciados para comungarem. Burke foi arredado do Supremo Tribunal do Vaticano em 2014, pela mão de Francisco, e foi nomeado para um cargo na Ordem de Malta, longe dos holofotes de Roma. Esteve sempre ao lado de Festing durante todo o processo e, apesar das divergências com o Papa, ambicionava ser o seu escolhido para o lugar de “delegado especial”. A escolha recaiu no arcebispo Angelo Becciu, confirmando a cisão entre os dois, escassas horas depois do protesto silencioso que se espalhou pelas ruas de Roma.