Já todos lhe conheciam a força e as causas que defendia sem olhar a possíveis barreiras. Vai daí que não tenha sido estranho o convite para, juntamente com Antónia de Sousa, assumir o comando de um programa sobre mulheres, num formato nunca antes feito em Portugal. Quinzenalmente, o “Nome-Mulher” dividia-se entre entrevistas e reportagens sobre o comportamento da ala feminina durante o PREC, abordando temas que podiam ir do divórcio à realidade das mães solteiras. Até ao dia em que o incontornável tema do aborto foi chamado para assunto principal, dividido em dois programas. Se no primeiro foi reunido um painel de especialistas a falar sobre o tema, o segundo teve direito a reportagem.
“Decidimos filmar uma mulher que escolheu fazer um aborto em sua casa, apoiada por médicos de uma clínica da Cova da Piedade”, conta Maria Antónia Palla, jornalista hoje com 84 anos e mãe do primeiro-ministro António Costa. Apesar de coordenar o trabalho, não acompanhou a fase de montagem e, tal como a maioria dos portugueses, foi apanhada de surpresa com as imagens, mais explícitas do que era esperado. Isto porque, ao contrário das fotografias de fetos de seis meses usados nas campanhas antiaborto, a reportagem mostra pedaços de um embrião dentro de um frasco. “Admito que foi exagerado, talvez não fosse preciso ir aos pormenores, mas não me arrependo do que fiz”, diz Maria Antónia.
Apesar da consciência da realidade não lhe permitir ficar impressionada com as imagens, sabia que a reação geral não seria a mesma. “Liguei logo à Antónia e disse: ‘Isto vai dar sarilho.’” E deu mesmo. Choveram queixas na RTP, o CDS protestou, a Igreja protestou, a Maternidade Alfredo da Costa fez queixa por “exercício ilegal da medicina” e o programa foi imediatamente cancelado por ordem do presidente da RTP, Manuel Pedroso Marques que, por sinal, era marido de Maria Antónia. “Sempre tivemos um conceito de independência muito grande sobre o que cada um fazia profissionalmente”, refere.
Se, na esfera pessoal, o problema foi facilmente resolvido, nos tribunais, a espera foi de três anos, durante os quais foi chamada várias vezes a testemunhar, assim como toda a equipa de produção. “Até o homem que carregava com o material de filmagem teve de ir, imagine.” Acusada de “ofensa ao pudor e incitamento ao crime”, acabou absolvida em 1979, justificando o veredicto com “muita sorte” e um “rol de testemunhas infinito”.
Entre ameaças e sinais de apoio
pesar de o final ter sido favorável, Maria Antónia não esquece alguns dos momentos mais difíceis. Um deles aconteceu em vésperas do julgamento, quando o seu advogado de então desistiu de a acompanhar. “Foi um choque terrível”, admite. Contou com uma ajuda de última hora, mas que se revelou preciosa, de Lia Viegas, advogada conhecida pelo empenho em casos ligados aos direitos das mulheres.
Aliviada de uma pena que nem sabe qual seria, “mas seria pesadíssima com certeza”, o verdadeiro respirar de alívio veio quando percebeu que a sua condenação tinha tido consequências na esfera pública. “Foi o verdadeiro ponto de partida para que se desse início a uma campanha para a despenalização do aborto.” Aliás, para Maria Antónia Palla, falar–se do assunto já era uma vitória. “Tinha imensa gente que vinha ter comigo na rua e me contava os episódios pessoais de aborto clandestino”, lembra, uma experiência que via como tão enriquecedora que a fazia esquecer os telefonemas anónimos que ensombravam as madrugadas lá de casa. “Insultavam-me a mim e à minha família e perguntavam: ‘Não tem aí um pezinho de salsa?’”, fazendo referência uma das técnicas usadas para interromper a gravidez, que passava por introduzir na vagina ramos frescos.
E agora?
Mesmo antes da exibição da reportagem, era conhecida a posição de Maria Antónia quanto ao tema. “Sempre fui a favor da despenalização e nunca o escondi, para mim é uma questão de liberdade”, argumenta.
No entanto, apesar de toda a evolução legislativa que a temática teve em Portugal, Maria Antónia não consegue ver um fim na sua luta. “Saiu-se da clandestinidade, que era uma coisa terrível, mas a liberdade também trouxe problemas”, admite.
A jornalista lembra que a decisão de ter um filho “é a mais grave e pesada que uma mulher pode tomar” e lamenta que nem todos tenham essa consciência. “Lutei para que as mulheres soubessem que um filho não é obra do acaso”, salienta, mesmo que tenha consciência de que a mensagem não chegou a todas. “Infelizmente há ainda quem não escolha fazer um aborto, mas não assuma a liberdade de ser mãe.”