Há uma velha tradição hebraica no Partido Conservador. O único primeiro-ministro de ascendência judia na história do Reino Unido foi eleito pelos tories. A saga é curiosa. Foi Benjamin Disraeli, em 1874.
A família era de classe média, mas humilde, antepassados de imigrantes italianos como prova o nome. Chega ao Parlamento britânico já convertido ao angelicanismo. O lado hebreu dá-lhe, curiosamente, distinção entre os seus pares políticos.
Disreali destacou-se por modernizar os conservadores. Descobriu o “operário tory”, estendendo-lhe direitos de voto. Criou o “one-nation party” – o partido de uma nação – que tantas vezes ouvimos David Cameron referir na campanha para as legislativas que lhe deu uma maioria absoluta em 2015. No entanto, ao contrário do senhor Cameron, Ben Disraeli conseguiu modernizar o partido e também dar um ar da sua graça na arena diplomática. O domínio britânico do canal Suez, de início, foi da sua responsabilidade. Brilhou no Congresso de Berlim, em 1878, cortando as ambições russas nos Balcãs e salvaguardando o interesse de Sua Majestade, a célebre Rainha Vitória, de quem ficou amigo pessoal. Além disto tudo, escreveu mais de uma dezena de romances, sendo alguns impróprios, pelo menos para a rainha ler.
Hoje, quando se entra em Westminster, há outro judeu não praticante que, como Disraeli, foi parar onde muitos não o queriam. Este mês, o seu nome encheu capas na imprensa internacional, revoltou deputados conservadores, quebrou protocolo e encheu as medidas à oposição. John Bercow, o speaker da Câmara dos Comuns, que cá seria o presidente da Assembleia da República.
Perante o agendamento da visita de Estado de Donald Trump ao Reino Unido, depois de a primeiro-ministro Theresa May visitar o novo Presidente americano em Washington, John Bercow insurgiu-se contra a possibilidade do senhor Trump discursar no Parlamento britânico.
“Antes da imposição do banimento de migrantes, eu já era fortemente contra um discurso do Presidente Trump em Westminster; depois da imposição do banimento de migrantes, estou ainda mais fortemente contra um discurso do Presidente Trump em Westminster”, atirou do seu lugar, sob aplausos do Partido Trabalhista. Para si, trata-se de “uma honra para merecer e não um direito automático”.
Bercow admitiu que “valorizamos a nossa relação com os Estados Unidos e se a visita acontecer está bem acima das minhas funções”, no entanto não deixou de salientar: “Quanto à Câmara dos Comuns, sinto que a nossa oposição ao racismo e ao sexismo, o nosso apoio à igualdade perante a lei e o nosso sistema judicial independente são considerações enormemente importantes”. Nigel Farage considerou-o, naturalmente, “uma desgraça”.
Vieram outras críticas, a que já está mais que habituado. Anúncios de fim de carreira, a que também tem sobrevivido desde que entregou o cartão de militância conservadora para ser speaker. Antes fora parlamentar tory e foi precisamente um ex-colega que inquiriu sobre a sua “imparcialidade” no dia a seguir a tomar posição contra um discurso de Trump em Westminster.
Ao parlamentar, Bercow respondeu que “compreende inteiramente que haja visões diferentes sobre o tema, que serão todas e sempre tomadas com respeito”, mas que o seu comentário foi feito sobre uma matéria “que é da responsabilidade do cargo”.
“Se o honravel cavalheiro não concorda com o meu modo de exercer o cargo, esse é outro ponto, ou se não aprova das minhas maneiras, não imaginaria que me achasse demasiado direto nas palavras pois ele próprio também o costuma ser”, sorriu para a sua antiga bancada, cujas suas gravatas floridas e fluorescentes irritam e com que ganhou o hábito de trocar galhardetes. Já quando propôs o fim da utilização de perucas por parte dos secretários da mesa viu reações conservadoras serem mais… conservadoras.
No último dia de William Hague, ex-líder dos conservadores, como líder de bancada, em 2015, alguns tories reuniram-se para resolver o problema. Julgando ter os votos suficientes, propuseram uma votação secreta para causar uma eleição do speaker. A votação perdeu 228-202, com uma larga ajuda da bancada trabalhista. Lia-se, nos editoriais de política londrinos, que o governo de Cameron não estava satisfeito com Bercow e tinha aprovado a manobra. Foi uma derrota amarga para Hague, no seu último dia no parlamento e no seu aniversário.
Angela Eagle, responsável trabalhista pelos assuntos da Câmara, afirmou ao The Guardian “nunca ter visto nada assim em vinte e três anos de Westminster”. Paul Flynn, deputado por Newport, acusou William Hague de “um maldoso pontapé no melhor speaker que tivemos em trinta anos”. Flynn é do Partido Trabalhista. John Bercow, o tal melhor speaker, foi do Partido Conservador.
O responsável pelos procedimentos legais da Câmara, também conservador, foi um dos tories que discursou pela manutenção de Bercow contra a moção conspiratória de Hague. “Fui tratado como um tolo, mas hoje chegarei a casa e verei um tolo honrado no espelho, e prefiro ser um tolo honrado, nisto ou em qualquer assunto, que um esperto”. Depois de uma intervenção que ficou célebre, um secretário de mesa, ainda de peruca, leu os resultados da votação que salvava a carreira de John Bercow. Ironicamente, a bancada da esquerda celebrou enquanto William Hague se afundava, uma última vez, no banco parlamentar. Bercow continha as lágrimas. E piscou-lhe o olho.
Bercow chegou ao cargo como deputado, em 2009, ainda bastante desconhecido. Foi eleito pelo círculo de Buckingham e fez uma transição ideológica vindo de um setor mais à direita do Partido Conservador – chegou a estar num comité de migrações e repatriamento enquanto jovem ativista.
Nasceu em Londres, de ascendência judaica, mas sem a herança italiana de Ben Disraeli; os seus avós eram antes romenos. O pai, taxista. Na juventude, foi uma estrela do ténis, mas a baixa estatura impediu-lhe prosseguir o sonho. Trabalhou em banca e consultadoria de negócios e comunicação. Também ao contrário de Disreali, nunca escreveu romances de amor (nem chegou a primeiro-ministro), mas, tal como o primeiro, não é um judeu praticante.
Em 1996, depois de falhar duas vezes a tentativa de ser eleito deputado, aluga um helicóptero para estar presente em duas reuniões de círculos eleitorais distintos no mesmo dia. É eleito por um deles. “Foram as mil libras mais bem gastas da minha vida”, ri, hoje, sobre o helicóptero”.
Bercow, como já contado, desenvolveu uma boa relação com o Partido Trabalhista, mesmo quando era oposição ao mesmo. Em 2007, deram-se até rumores de que mudaria de bancada, mas aceitou apenas o convite do então primeiro-ministro Gordon Brown para assessorar uma lei para apoio a crianças com necessidades especiais. Os conservadores deixaram passar, alegando que Bercow tinha especial conhecimento sobre o assunto. Um dos seus filhos é autista.
Tradicionalmente, quando um speaker é eleito, demora a conseguir atravessar a bancada parlamentar até ao novo posto para ser felicitado pelos colegas. Bercow fê-lo em tempo recorde. Quase não recebeu apertos de mão. Para os tories, era o amigo do inimigo que tinha vencido, em vez do outro candidato, educado em Eton. Bercow, aliás, é mais que amigo do inimigo; é casado com ele. A mulher, Sally, é uma assumida militante labour.
Chegado a speaker, continuou a pisar os calcanhares dos colegas. Se enquanto parlamentar chegou a dizer “treta!” enquanto um conservador discursava, enquanto speaker chegou a corrigir ministros do seu próprio partido por usarem o telemóvel na Câmara. O partido não lhe perdoa, a esquerda ri e o povo adora. Familiar, não é?