Projeto pioneiro está a pôr os portugueses a parar, pensar e agir

A cidadania não se decreta, pratica-se. Para dar uma ajuda ao ditado, a secretária de Estado para a Cidadania  e Igualdade impulsionou um projeto que pôs quase cinco mil pessoas a pensar sobre estas questões. O i foi passar um dia com a equipa que anda a percorrer o país

Quanto tempo é que você dura?”A pergunta inusitada pôs um sorriso na sala.O destinatário da questão era Afonso Lourenço Costa, presidente da junta de freguesia de Alverca e do Sobralinho. 

O autarca demorou meio segundo a perceber que a pergunta de uma criança da escola do concelho não era um prenúncio de uma vida encurtada. “Os mandatos são de quatro anos”, responde, aproveitando para acrescentar “que as eleições autárquicas são este ano”. “E se não quiser ser mais presidente como faz para sair?”, pergunta outro aluno. “Ninguém é obrigado a ficar, está previsto na lei que as pessoas que foram eleitas também podem renunciar”, diz Afonso Costa.

“E isto não é uma profissão, é um cargo”, aproveita para explicar Sandra Silvestre, coordenadora da associação Animar. “É assim uma espécie de missão. O presidente também tinha uma profissão antes de ser eleito, não tinha, senhor presidente?”. O autarca – antigo editor discográfico – confirma e aproveita para falar um pouco melhor das funções de presidente. 

Os alunos acabaram por ser eles, de certa forma, a dar a resposta: “Um presidente da junta gere a terra”.
Sandra continua a interpelar os cerca de 15 alunos da Sol School, um centro de de estudos em Alverca criado pelo Centro Social Para o Desenvolvimento do Sobralinho e que, há uma semana, recebeu a equipa do Roteiro da Cidadania. 

Cidadania sobre rodas O Roteiro da Cidadania – uma ideia da Animar (Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local) e apoiada desde o início pela secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Catarina Marcelino – é um projeto pioneiro que, nos últimos 120 dias, já falou sobre as questões de cidadania com quase cinco mil pessoas nos quatro cantos do país. 

A equipa tem andado pela estrada com uma carrinha equipada a rigor. E o rigor de que falamos nada tem a ver com brindes. Os melhores presentes desta carrinha são mesmo os técnicos que, de norte a sul, têm posto as diferentes comunidades a pensar – e a pensar em como agir – sobre a igualdade de género, violência doméstica, o ativismo na sociedade e o que é isto de ser cidadão. “A ideia é replicar, todos os dias, o Dia Municipal para a Igualdade, que existe desde 2010. Pensámos numa lógica de parceria que reativasse as redes sociais (as da vida real) entre as autarquias e as associações que estão no terreno”, diz Célia Lavado, da Animar. 

E como funciona o processo? Basicamente, é preciso uma organização local – como uma escola, ou uma associação – predispor-se a receber a equipa. Em troca, recebem uma resposta particular, já que os temas abordados em cada sessão dependem do trabalho ou dos interesses e problemas das comunidades. O único critério é que os temas escolhidos estejam inscritos nas temáticas do desenvolvimento sustentável. “O que preocupa as pessoas de Lisboa poderá não ser o mesmo das pessoas de Barrancos”, disse Catarina Marcelino ao i. “Este projeto é nacional, vamos estar presentes dos Açores a Trás-os-Montes, mas tem uma base muito específica, porque tem em conta aquilo que são os objetivos de desenvolvimento local porque tem a ver com a realidade de cada sítio”, resume.

 Para a secretária de Estado, o grande desafio nesta matéria é a educação para a cidadania nas escolas. “O objetivo é mesmo criar pensamento e depois ação. Há aquela frase que diz que a cidadania não se decreta, pratica-se. Julgo que a educação para a cidadania é a chave para a consolidação não só da sociedade mas na vida de cada um de nós”, disse ao i. Em paralelo, estão a ser organizados seis seminários sobre as mais diferentes temáticas, desde a economia social à educação para a saúde.

No final do projeto, marcado para julho, Catarina Marcelino quer usar a informação recolhida para medir o pulso do país e traçar novas metas. “Só assim podemos melhorar como sociedade”, acredita.
Não é preciso esperar pelo fim para aceder às opiniões e sugestões dos cidadãos que já se cruzaram com o Roteiro: pode ser tudo consultado na página cidadaniaemportugal.pt. 
Uma (mini)democracia participativa No dia em que o i acompanhou o Roteiro da Cidadania, a manhã começou na escola básica do Sobralinho. 

Ao longo de duas sessões, as técnicas de serviço naquele dia – Sandra Silvestre, que já referimos, Vanda Godinho, Célia Lavado a quem compete também a coordenação do projeto e Raquel Gonçalves – convidaram os alunos de terceiro e de quarto ano da escola a pensar no que estava mal na sua freguesia – e que, portanto, deveria parar. 
Divididos em grupos, os alunos identificaram alguns problemas. como os dejetos dos animais nas ruas, a falta de um lar de idosos, a poluição das fábricas e a falta de espaços verdes . As crianças também referiram que era importante ter a biblioteca aberta nas férias e disseram que faltava emprego e transportes públicos na freguesia.

“Temos aqui grandes ideias de governo!”, brincou Sandra. “Agora pensem como podem agir para mudar”, pediu. “Se calhar há coisas que vocês podem fazer. Muitos falaram do problema com os dejetos dos animais, porque não escrevem uma petição sobre este problema, reúnem as assinaturas e entregam ao presidente da junta?”
Já sobre a falta de lar de idosos, foi proposto aos alunos que, enquanto não há verbas, dessem o seu tempo como voluntários para acompanhar os mais idosos. 

Não só o que é mau interessa, por isso os estudantes também identificaram as mais-valias do Sobralinho. O facto de toda a gente se cumprimentar, a escola nova, o pavilhão, a Torre de Relógio e a proximidade do rio Tejo foram mencionados por quase todos os grupos.

“Sabem o que significa ser cidadão?”, perguntou outra das técnicas do Roteiro. “É ser parte de uma terra”, respondeu um dos alunos. A lista de direitos e deveres tomou o resto da conversa. Pelo caminho, ainda houve tempo para explicar em linguagem simples a hierarquia dos órgãos de soberania e o que é a ONU e as instituições europeias. 
Quando se saltaram fronteiras, os problemas identificados pelos alunos com idades, sensivelmente, entre os 8 e os 10 anos foram imediatos: a guerra na Síria e o muro proposto por Trump.

“Isto é muito interessante”, comentava Felizarda Correia. Mesmo que não o saiba, Felizarda é um dos rostos da democracia participativa desta freguesia – esta senhora é um dos membros da direção da Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos do Sobralinho que promove atividades para todas as idades. “Venham cá no 25 de Abril, vamos declamar poemas do Ary dos Santos”, convida, enquanto prossegue a discussão com os conterrâneos de palmo e meio. 

Luís Coelho, presidente do Centro Social para o Desenvolvimento do Sobralinho, também entrou na troca de ideias com um dos grupos. O organismo a que preside – que presta um apoio transversal à população – foi identificado pelos alunos como uma das valências positivas da freguesia. “É algo que me deixou muito emocionado”, confessou mais tarde ao i.
No final da sessão, a descer as escadas, os habituais empurrões. “Não estás a ser um bom cidadão!”, dispara um aluno. Nem que seja a curto prazo, a mensagem colou.
 
93 localidades Esta segunda-feira, o Roteiro da Cidadania já tinha passado por 93 locais e realizado 118 atividades. Um caminho que tem sido feito de descobertas. “O conservadorismo vem de onde menos se espera”, contava Sandra Silvestre. “Já conversámos com um jovem de 19 anos que discordava por completo do facto de as mulheres fazerem relatos de futebol”, exemplifica. 

Sandra também já trocou ideias que a deixaram a pensar. “Em Guimarães, falei com três jovens sobre a violência contra as mulheres e o rapaz colocou-me um dilema, que é a questão do filho denunciar o próprio pai que é agressor ou vai deixar a mãe ser vítima. E o próprio rapaz disse que nunca tinha pensado nisto. Este trabalho é importante por isso, é deixar as pessoas a questionarem-se.”

Também já houve momentos mais tensos de partilha. “Em Ponte de Lima, uma senhora contou pela primeira vez em público que tinha sido alvo de violência doméstica. E deixou um recado aos filhos, disse que, caso algum deles tivessem esse comportamento, ela acolheria as noras.” 

Sandra, formada em Relações Internacionais e ligada a várias organizações culturais, sociais e políticas –, parece ter sido talhada para o “Roteiro da Cidadania”. É um daqueles casos felizes em que o percurso profissional e o projeto se cruzam. A técnica acredita – e espalha a mensagem de que “os territórios têm que ter a participação de todas as pessoas de todas as idades”. Às vezes basta parar. Pensar. E agir.