sto da comida tem muito que se lhe diga. Muito mais do que uma necessidade básica, comer – e cozinhar –, especialmente em conjunto, é todo um ritual quase místico. Um processo que todos descrevemos como sendo de cheiros – de pão acabado de cozer, de maçãs e canela –, de texturas tenras – qual recheio de empadas cheias de carne envolvidas num molho cremoso –, de crocantes – tal como a cobertura amanteigada de um crumble –, de momentos doces, de outros salgados. Podíamos continuar, mas cremos que já o situámos no cenário. Se ainda não fomos bem sucedidos, pedimos que pare e pense por um segundo nas refeições mais memoráveis que teve em família.
Obrigada. Agora que já tem esse calor bom a acompanhá-lo, podemos continuar. Joana Andrade Nunes – advogada, mas aqui a profissão pouco interessa – sabe tudo o que há para saber desses momentos: cresceu à volta da mesa. “Beirã de gema”, como a própria se descreve, na sua família, oriunda do Sabugal, a relação com a comida é um caso sério. “É uma desculpa para tudo”, resume. “Gosto de cozinhar, de por uma mesa bonita, de ter flores, de receber e depois ficar a partilhar a refeição sem pressas”.
Um gosto – e uma desculpa –levada a sério por todos. “Todos cozinhamos e cada um tem já o seu papel específico”, conta. “Já sabemos quem é que corta o presunto, quem faz a sangria de frutos vermelhos. O meu pai e o meu marido cozinham muito bem. O arroz doce, claro, é sempre a avó”.
O caminho natural da vida pôs Joana a pensar – e a fazer – as tarefas culinárias que competiam aos membros mais velhos. “Neste momento o arroz doce já sou eu que faço. Saltou uma geração”. Joana já tinha um blogue – o “Camomila Limão” – que é, desde há uns anos para cá, o seu caderno de receitas online. Mas depois de se ter deparado com a velhice das avós que ia chegando – assim como as novas vidas da família, entre as quais se contam os seus dois filhos pequenos, quis deixar para a geração futura o legado que recebeu da mãe e avós.
Assim nasceu o livro “Quatro Gerações À Mesa”, onde a advogada reuniu as receitas de que mais gosta da avó, da mãe, as suas e também as que prepara para a quarta geração da família: os seus filhos.
O que começou como um caderno para “memória futura” tornou-se num caso de sucesso. O “Quatro Gerações à Mesa” foi eleito no ano passado como o melhor livro de culinária de Portugal 2016 na categoria “Food and Family” pelo concurso “Gourmand World Cookbook Awards” – uma espécie de óscares para livros de cozinha. Segundo Edouard Cointreu, presidente do júri, este é um livro especial porque “nos séculos passados não era assim tão usual ter quatro gerações à mesa. E isso é raro agora. Este livro excelente mostra quão importante isso é e partilha essa experiência”, considerou.
Agora, o livro está na final mundial do “Gourmand World Cookbook Awards”, que se vai realizar na China. Os vencedores serão conhecidos no final de maio.
o sabor de quatro gerações
Quando lhe perguntamos a que sabe a sua infância, Joana Andrade Nunes nem hesita: “Ao doce de abóbora das minhas avós”.
E aqui voltamos a recorrer à palavra ritual, já que não há nenhuma outra que nos pareça adequada para descrever o processo que Joana relata. “A abóbora era cortada aos palitos e, no dia anterior, coberta de açúcar, casca de laranja e paus de canela. Só era transformada em doce no dia seguinte”. Para tal, entram na história os panelões especiais e uma família que fazia da execução do doce um acontecimento.
Esta é uma das receitas deixadas pelas avós que Joana partilha no livro, mas deixa a ressalva: a abóbora que usar fará toda a diferença. O capítulo dedicado às receitas das avós, Maria e Suzete, tem um encanto especial. Primeiro, os cozinhados partilhados são típicos da Beira Alta. Aqui, pode encontrar receitas como o “arroz de lebre da avó Maria”, a “sopa de tomate [coração de boi!] com ovo escalfado”, a “manteiga de castanhas tostadas”, a “salada de coelho bravo com alecrim”, os “doces da Beira Alta” ou as “papas de abóbora da Beira Alta”.
A segunda parte da magia aconteceu quando Joana se viu obrigada a redigir as receitas.
“Fui ao Sabugal ter com a minha avó que só me dizia que era um bocadinho disto, um bocadinho daquilo”. Foi precisa uma dose de paciência – no bom sentido – para conseguir chegar às medidas e pesos e partilhar, assim, as receitas mais especiais da família.
“Depois a parte da minha mãe foi mais simples”, conta. “Ela já tinha tudo organizado e com as medidas certas”.
A partir daí, foi só escolher as preferidas da família. Da seleção fazem parte os “canapés de perdiz com doce de frutos do bosque”, “espetadas de legumes e tamboril em pau de loureiro” ou a “torta de canela com doce de abóbora beirão”.
Já o capítulo referente às receitas da própria Joana é mais heterogéneo, apesar da autora não se revelar muito aventureira pelos sabores de outras latitudes. “A cozinha portuguesa é, realmente, a que de que mais gosto”.
Ainda assim, neste capítulo podemos encontrar uns pozinhos de outros lados que resultaram numas “empadinhas de galinha com caril” – “façam a própria massa e congelem, faz a diferença”, sugere a Joana; uma “dourada ao sal entrançada” ou um “assado de abóbora com requeijão de ovelha”. Nos doces, a autora propõe um “bolo de nata perfumado com limão”, umas “tarteletes de chocolate com caramelo e flor de sal” ou “mousse de iogurte com doce de morango”. “Queria apresentar receitas que não estivessem no blog porque o livro teria que ter também essa mais valia”, explica Joana que é também adepta da sazonalidade dos produtos. “Nunca ninguém me verá a cozinhar com tomate fresco no inverno”, exemplifica.
O capítulo dos mais novos, para além de sugestões de papas e primeiras refeições, é acompanhado de algumas dicas que resultaram das conversas com a pediatra do filho mais velho, Francisco Maria, de dois anos, que, quando Joana escreveu o livro, em 2015, ainda era filho único.
O hobby da cozinha
Capítulos apresentados, falemos um pouco do processo. “Cozinhei e fotografámos as cem receitas que compõe o ‘Quatro Gerações à Mesa” em quatro fins de semana”, lembra. “Trabalhava durante a semana, começava a cozinhar na sexta à noite, depois era fotografar”. Tudo isto grávida da segunda filha, Maria do Carmo.
Um esforço que compensou. “Soube na véspera de Natal que tinha ganho o melhor livro de culinária daquela categoria, não estava nada à espera”.
Ainda assim, o presente em forma de sucesso do livro não fez com que Joana sentisse desejo por voos culinários mais altos.
“Sou uma amadora, para mim cozinhar é um hobby”. Um hobby que, livros à parte, continua a praticar à séria. Cozinhou toda a comida dos batizados dos filhos e, quando lhe perguntamos qual foi a última “refeição memorável” que teve, aponta o aniversário de dois anos de Francisco. “Mais do que a comida, são os momentos. Andamos todos cada vez mais a correr e uma coisa que quero transmitir aos meus filhos são estas alturas em que paramos para partilhar a vida com a família e amigos. Um refeição memorável implica estarmos todos juntos”.
E é assim que Joana Andrade Nunes pretende continuar. A manter a culinária como uma atividade de lazer que, depois, se transforma em ponto de partilha. Por isso, deixar o Direito pelos tachos não é uma hipótese em cima da mesa.
No dia em que recebeu o SOL, a filha de Joana, Maria do Carmo, completava seis meses. Uma das avós eternizada no livro morreu recentemente. Um ciclo que se fechou, outro que começa.
Mesmo que não ganhe o melhor livro a nível mundial, Joana, com a filha ao colo, responde: “Escrevi o livro para criar memória futura. E essa é a minha vitória”. J