Os bancos estão obrigados a comunicar ao fisco as transferências de dinheiro feitas a partir de Portugal para contas com sede em offshores. O fisco tem depois de fiscalizar essas transferências para controlar se há lavagem de dinheiro ou fuga aos impostos. Ora, entre 2011 e 2014, os bancos terão cumprido a obrigação de comunicar ao fisco a saída de dez mil milhões de euros, mas a Autoridade Tributária e Aduaneira terá falhado a sua obrigação e não terá inspecionado esses vinte movimentos.
As offshores são legais. A banca é obrigada a comunicar. O fisco é obrigado a inspecionar. Neste caso, a banca teria sido a boa da fita – porque teria cumprido a lei; o fisco teria sido o mau da fita – porque teria fechado os olhos às transferências. O PS, pela voz do seu porta-voz, João Galamba, um moderno Torquemada, já veio declarar que quer apurar se o fisco fechou os olhos de propósito, isto é, se o Governo de Passos Coelho, através do seu secretário de Estado Paulo Núncio, deu a ordem para que o dinheiro saísse do país sem controlo.
Hoje, acompanho João Galamba no seu auto-de-fé. Desde logo porque nenhum português consegue ficar indiferente à gigantesca quantia: dez mil milhões, que é mais do que o orçamento anual da saúde ou da educação em Portugal. Depois, porque basta fazermos as contas para percebermos que, se são dez mil milhões de euros e vinte movimentos, cada movimento teria sido, em média, de 500 milhões de euros.
Porém, a verdade é que, por mais que bloquistas, comunistas e alguns socialistas rebolem os olhos e escorram ódio quando soletram cada letra da palavra offshore, não há em Portugal esse tipo de verbas. Existem transferências de 30 ou 40 milhões para offshores. Não somos a Rússia, não há vinte pessoas ou empresas com capacidade para transferir 500 milhões cada. As únicas entidades que no país movimentam esses valores são os bancos – e, por isso, poderemos estar perante movimentos entre bancos, movimentos interbancários. E, dado estarmos apenas a falar de vinte movimentos, não deve ser difícil descobrir e apurar a verdade.
Embora o timing seja óbvio (evitar que se fale tanto na CGD) e as motivações sejam políticas (comprometer Passos Coelho), o país quer saber, precisa de saber. Há vinte anos, os portugueses tinham uma relação opcional com o fisco. Ninguém sabia o número fiscal de cor, quanto mais pedia faturas. Vivia-se na economia paralela. Ministros como António Vitorino caíam por não pagar o imposto de sisa. Hoje sabemos melhor o NIF do que o código postal de casa – e ainda este ano houve mais gente a validar as faturas no e-fatura na noite de S. Valentim do que a ir jantar fora com o cônjuge. O paradigma mudou.
A nossa relação com o fisco é constante, diária e brutal. Agora temos uma máquina fiscal do primeiro mundo com rendimentos do terceiro. Grande parte da perda dos rendimentos dos portugueses teve a ver com a máquina fiscal. Antes o fisco não cobrava, agora cobra. Por causa disso, a mera ideia de transferência de tamanha riqueza sem controlo do fisco causa alarme social. Só espero que aquilo que começou como gigantesco auto-de-fé não acabe como pífia caça aos gambozinos.