Michael Löwy. “A religião também é um campo de disputa das várias classes sociais”

Tem o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. Acredita que há novas resistências a surgir no mundo. Vivemos tempos de novas lutas

O romantismo revolucionário não tem como objetivo, como outros romantismos, um retrocesso impossível ao passado, mas apenas um desvio pelo passado comunitário em relação a um futuro utópico. Para Löwy, é preciso trabalharmos para reencantar o mundo através da poesia, do amor, da religião e da revolução, para podermos ambicionar quebrar a jaula de ferro em que nos encerrou a industrialização capitalista e evitar o desastre ecológico que se avizinha.

Numa passagem de um livro seu em que se aborda Walter Benjamin e Gramsci fala-se da necessidade de organizar o pessimismo. Nunca houve tantas razões para ter pessimismo. Porque não se vislumbra a sua organização?

A ideia de organização do pessimismo não é de Gramsci. Foi usada primeiro por Pierre Neville, comunista francês que depois saiu do partido para a oposição de esquerda trotskista, e Walter Benjamin retoma essa ideia num seu ensaio sobre o surrealismo. O que tem Gramsci é uma expressão, de que eu gosto muito, que diz que precisamos combinar o pessimismo da razão com o otimismo da vontade. Acho isso muito apropriado à situação atual. Estamos numa situação em que a realidade leva ao pessimismo. É Donald Trump, o muro e a extrema-direita na Europa, regimes ditatoriais pelo mundo fora. Isso tudo, somado com a crise económica em que vive o mundo, é preocupante. Perante isto tudo, há sinais de resistência, expressos até no desejo da juventude de construir uma alternativa radical. Há razões que nos permitem ter também esse otimismo da vontade. É nesta dialética que nós nos encontramos atualmente. 

Um autor a que dedica um dos seus últimos livros, “La Cage d’acier : Max Weber et le marxisme wéberien”, defende que existe uma crescente burocratização do mundo que, de alguma forma, vai retirando espaço à liberdade humana, e V. defende na sua obra que há uma certa necessidade de haver um reencantamento do mundo, e daí o romantismo, mas, ao mesmo tempo, o romantismo não pode ser o Tea Party e Donald Trump. Eles não são também filhos do romantismo?

(Risos) Acho que não. Para Weber, o funcionamento do sistema capitalista privilegiava uma racionalidade instrumental extremamente eficaz, mas no qual o espaço para a liberdade humana se vai reduzindo. Daí ele usar a expressão da “jaula de ferro”, que é o que o capitalismo impõe. Estamos cada vez mais encerrados nela. Weber era um homem da resignação. Era fatalista e, como bom nietzschiano, a atitude correta era aceitar o destino; e, no caso de Weber, esse destino era a jaula de ferro. Daí esse seu diagnóstico sobre o desencantamento com o mundo. Pelo seu lado, o romantismo é uma tentativa de quebrar essas barras de ferro. Uma das maneiras é essa tentativa desesperada de conseguir o reencantamento do mundo, seja através da religião, da poesia, do amor ou da revolução. Porque a revolução também é uma forma de reencantamento do mundo.

Aquilo que eu lhe colocava é se esse romantismo, que é muitas vezes uma reação moderna à modernidade, não pode abarcar várias tendências ideológicas ?

A essência do romantismo é um protesto cultural contra a modernidade industrial capitalista em nome de certos valores do passado. Precisa de ter esses dois elementos, senão não é romantismo. Donald Trump e o Tea Party não têm nada que ver com o romantismo: fazem parte de um movimento ultraneoliberal em que o capitalismo é uma maravilha que só é atrapalhada pelos serviços públicos, o Estado e os salários mínimos. O romantismo é um protesto contra o capitalismo com referência ao passado imaginário e idealizado. Este protesto pode ser muitas vezes regressivo, reacionário e sonhando com a restauração do passado: pode ser como aqueles que desejam o regresso à Idade Média, como Novalis, há várias modalidades. Mas o romantismo não é apenas essa manifestação regressiva. Há os que querem voltar ao passado, mas há um outro tipo de romantismo, dos que sabem que não podemos voltar ao passado, mas querem dar uma volta pelo passado em direção ao futuro, como defendia Ernst Bloch.

Fazendo apelo ao seu livro “Redenção e Utopia” e aos trabalhos de Benjamin, é a ideia de que no passado se conjugam vários rios e que essa reação romântica pode permitir a redenção desses rios dos vencidos. 

É isso, e com uma referência a formas de vida e valores pré-capitalistas. Há muitos exemplos disso; mesmo Marx e Engels, que não eram românticos, têm esse pensamento quando falam no comunismo primitivo.

Marx tem um texto de juventude sobre o diabo em que vai buscar algumas das referências culturais do romantismo literário. 

É verdade. Mas eu estou a falar nas teorias políticas. Eles têm essa fascinação pelo comunismo primitivo e por essas tribos iroquesas da América do Norte. Não propõem voltar a esse passado, mas acham que essas liberdades e valores, que existiam numa sociedade que não tinha nem classes, nem propriedade, nem patriarcado, devem ser reencontrados sob uma forma nova na sociedade sem classes do futuro. 

Não há alguma coisa em comum entre a esquerda revolucionária e uma direita populista, que pode ser vista em Trump e na Europa, na crença da ação como possibilidade de mudança? Normalmente, os neoliberais, a partir da Escola de Viena, Popper e Hayek, têm a ideia de que não vale a pena tentar mudar nada pela ação, porque tudo o que se tenta tem efeitos colaterais não previstos e se deve deixar funcionar “livremente”os mercados. Esta nova direita populista não é diferente? 

Dentro do pensamento conservador e reacionário há formas mais economicistas e outras mais ativistas. Tudo isso faz parte das modalidades do pensamento burguês capitalista: alguns mais na ideia do laissez-faire e outros mais na ideia do Estado autoritário, mantendo a ordem para a economia capitalista funcionar. 

Há alguma situação de paralelo entre os anos 30 e os dias de hoje?

Sem dúvida: há paralelos e semelhanças numa conjuntura diferente. O que há de comum é o ascenso de uma corrente nacionalista de direita, racista e xenofóbica, mas as formas são diferentes: não creio que estamos a caminhar para formas de Estado totalitário como foram a Alemanha nazi e a Itália fascista.

Mas há uma outra diferença, que é a ausência de um movimento revolucionário forte.

Sem dúvida, e isso é realmente bem preocupante. Havia uma resistência antifascista bem mais forte. Havia movimentos revolucionários, como foi o caso da Espanha, a Frente Popular na França, e havia ainda a União Soviética, mesmo com os seus problemas. Sabemos que a História nunca se repete, mas temos que aprender com as experiências e não podemos pensar que estas situações vão desaparecer sozinhas. Temos que organizar o pessimismo e as resistências. 

Concorda com o que defendia Laclau, que era preciso disputar a hegemonia política e criar um sentido que permitisse a emergência de uma rutura populista para alterar esta situação? 

O termo populismo vem sendo usado de uma forma equívoca em que entra tudo e nada. 

Um pouco à imagem do romantismo.

O romantismo é cheio de contradições, mas ele tem uma coerência: ele é um protesto contra a modernidade capitalista, buscando valores do passado. O populismo, o que é que é? O populismo é uma política que se diz dirigir diretamente ao povo criticando as elites. Não conheço nenhum político no mundo, de direita, de esquerda ou de centro, que não se dirija diretamente ao povo criticando as outras elites. O populismo tem uma história: ele aparece primeiro na Rússia, com o movimento Naródnaia vólia [A Vontade do Povo], que era um movimento revolucionário; depois tivemos o populismo latino-americano, com Perón, Vargas – era um fenómeno específico, nacionalista e anti-imperialista na região. O que hoje se chama populismo não tem muito que ver com isso. Eu sou um pouco reservado, mas a certo nível superficial podemos falar em populismo. O que me parece certo é que temos políticas de direita reacionárias, que se enquadram no sistema capitalista, que em alguns casos são xenofóbicas, racistas e nacionalistas de direita. E depois temos movimentos de esquerda, que também se referem ao povo como sujeito histórico e defendem a autodeterminação. Pode-se, a um certo nível, dizer que há também um nacionalismo de esquerda. Acho que as categorias de direita e esquerda ainda são mais pertinentes do que falar em populismo em geral. Esta ideia que há um populismo de direita e de esquerda tende um pouco a desfazer diferenças que, na minha opinião, são fundamentais.

Mas é possível ser de esquerda e defender a autodeterminação nacional?

Isso é verdade, eu admito que há um nacionalismo de esquerda. Sou crítico dos dois, mas admito um nacionalismo de esquerda.

Faz sentido, hoje, a esquerda continuar a defender a integração europeia?

Esta integração capitalista, neoliberal, autoritária, é insuportável. E podemos ver, com o caso grego, até que ponto chega em termos de opressão de um povo condenado a medidas económicas totalmente regressivas. Esta integração europeia tem de ser destruída. Mas eu acredito que é necessário uma outra Europa: uma Europa dos trabalhadores, dos povos e ecológica, com uma outra dinâmica para transcender os nacionalismos. Infelizmente, estamos muito longe disso. 

No seu livro “Redenção e Utopia” analisa um conjunto de jovens intelectuais judeus do centro da Europa, para os quais há uma certa “afinidade eletiva” entre o pensamento revolucionário e o religioso. No entanto, apesar de ser judeu, só descobriu as questões do judaísmo muito tarde.

Sou de origem judaica, na minha família havia um pouco de religião, mas isso nunca me interessou. Quando comecei a me politizar, na minha adolescência, via-me como ateu. Foi só quando comecei a ler autores como Walter Benjamin que descobri uma forma de messianismo revolucionário. Aí comecei a ver que havia uma constelação de judeus da Europa central que tinham uma leitura romântica e heterodoxa do judaísmo, para de-senvolver uma espécie de um pensamento revolucionário, libertário e utópico. Num segundo momento comecei a perceber que existia na América Latina um poderoso movimento social ancorado à Teologia da Libertação. Era uma outra realidade na qual a religião tinha um papel libertador. Isso tudo levou-me a reconsiderar o papel da religião.

Não é como o ópio do povo, como afirma Marx?

Esta frase é tirada do contexto, porque ele diz nesse mesmo texto, para além de a religião ser o ópio do povo, que a religião é expressão da miséria real e protesto contra essa mesma situação. Ele já se dá conta dessa dimensão de contestação. Mas quando o jovem Marx escreve este texto, ele não é marxista, é ainda um jovem neo-hegeliano de esquerda. Ele vê a religião como essência quase atemporal, como pensava Feuerbach. Anos depois, na “Ideologia Alemã”, ele já vê a religião sob a forma do materialismo histórico. A religião é uma das formas de produção de ideias e de ideologia, em função das classes sociais e do conflito na sociedade. Essa é a análise marxista baseada no materialismo histórico: a religião como produção histórica que tem relação com o conflito social. Temos religiões populares que são emancipadoras e subversivas, e outras que são regressivas e conservadoras. A religião é também um campo de disputa das várias classes sociais. 

Neste contexto, como vê a emergência deste Papa? 

O Papa Francisco é um personagem muito interessante. Eu, no início, tinha muitas reservas em relação a ele, porque eu achava que a atitude dele durante a ditadura da Argentina não era nada clara e que, no mínimo, ele tinha pecado por omissão. Não esperava muito de Jorge Mario Bergoglio, mas devo dizer que ele me surpreendeu com uma série de iniciativas que eu não esperava. Fez, logo de início, um discurso dizendo que o cristianismo tinha uma tradição de hospitalidade e que era preciso receber os refugiados que fugiam das guerras. Foi uma intervenção muito corajosa e contracorrente. Depois seguiu-se um conjunto de posições igualmente corajosas, reabilitando, de certa maneira, a Teologia da Libertação, convidando Gustavo Gutiérrez [dominicano peruano e um dos fundadores da Teologia da Libertação] para ir a Roma. E, finalmente, uma encíclica, Laudato si, que é muito interessante, porque faz um diagnóstico da questão ecológica, mostrando que a responsabilidade do desastre é do atual sistema económico globalizado. Ele não usa a palavra capitalismo, mas está lá indicado. 

Na época atual, porque não existe um movimento revolucionário? É falta de base social devido a uma forte transformação económica e tecnológica?

É preciso dizer que os movimentos revolucionários costumam surgir sobretudo dos países da periferia. As revoluções no século xx não ocorreram na Inglaterra, nos EUA e na Alemanha, ocorreram na Rússia, na China e em Cuba. Temos movimentos revolucionários: no México temos os zapatistas; no Médio Oriente temos o movimento dos curdos. que ganha nas zonas que domina na Síria, nomeadamente na zona de Rojava, formas de funcionamento participado e popular. É um movimento muito radical, com um espírito libertário e feminista muito interessante, vamos ver se se consegue manter. Mas não é só aí, na periferia da Europa: na Grécia, Espanha e Portugal têm aparecido movimentos de esquerda radical antineoliberais. Podem ter os seus problemas, limites e contradições, mas têm um certo peso e têm influenciado a vida dos seus países. Mesmo nos países capitalistas mais avançados, como são o Reino Unido e os Estados Unidos, temos visto a explosão de movimentos democráticos socialistas e antineoliberais com grande impacto, sobretudo na juventude, com figuras como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders. São velhos militantes socialistas que sempre tiveram uma postura íntegra oposta ao neoliberalismo e às políticas coloniais, e que hoje em dia têm uma audiência de massas que nunca tiveram na sua história. Não é um movimento revolucionário, mas é sinal que há uma grande insatisfação e desejo de mudança, e que a ideia de socialismo, que parecia enterrada pela queda do Muro de Berlim, ressurge de onde menos se espera. 

Vive em França há muitos anos. Considera que a eleição de Marine Le Pen é possível e perigosa? É diferente eleger Le Pen do que Macron e Fillon?

Não acho muito provável a eleição de Le Pen. Embora depois da surpresa Trump, tudo pode acontecer. Marine Le Pen, distintamente do pai, fez um esforço de modernização e aggiornamento do discurso, mas continua a ser um discurso profundamente racista, xenofóbico e nacionalista de direita, com aspetos autoritários e muito preocupantes. Havia um candidato de direita que provavelmente ia ganhar, o François Fillon, menos racista mas com aspetos muito reacionários e conservadores, neoliberal e fanático – em muitos aspetos, mais neoliberal que a própria Marine Le Pen. Propunha-se fazer coisas delirantes como demitir centenas de milhares de funcionários públicos. Mas Fillon está, neste momento, em maus lençóis, porque descobriu-se que empregou a mulher e os filhos em empregos fictícios altamente remunerados. Não sei o que vai acontecer. 

As sondagens dizem que é possível que seja Emmanuel Macron a passar à segunda volta das eleições.

O Macron é um homem de centro-direita e neoliberal. Do ponto de vista político e económico, não tem muita diferença com a maioria dos candidatos da direita, mas é menos racista. É mais um reacionário moderno. 

Aceita que existam homossexuais e imigrantes desde que tenham trabalho precário.

(Risos) É isso. Não sei o que vai acontecer. Não é totalmente impossível que o candidato do partido socialista, Benoît Hamon, possa passar à segunda volta.

Porque é que a sua corrente política [Novo Partido Anti-Capitalista, trotskista] não apoiou Jean-Luc Mélenchon?

A minha corrente está dividida. Eu colaboro com as duas: temos o Novo Partido Anti-Capitalista (NPA), que tem um candidato próprio, e uma cisão chamada “Ensemble” (juntos), que foi para a Front de Gauche de Mélenchon. Eu, pessoalmente, não apoio Mélenchon, estou mais com os meus amigos do NPA, que estão em maus lençóis porque, segundo a legislação francesa, que não é muito democrática, são necessárias 500 assinaturas de eleitos [deputados e presidentes de câmara] para se candidatarem. E isso está muito difícil. O NPA, que candidata um operário, sindicalista, talvez nem consiga se candidatar. Eu simpatizava com Mélenchon, mas acho a sua evolução preocupante: está cada vez mais nacionalista, contra a Alemanha, como se o inimigo não fosse o capitalismo mas os alemães, nacionalista francês acreditando na indústria militar francesa, nos seus aviões e bomba atómica – tudo coisas que não me agradam. E tem uma posição ambígua em relação aos estrangeiros e imigrantes que trabalham em França. Para além disso, nas anteriores presidenciais, o Mélenchon foi candidato da Front de Gauche e agora aparece como um homem que é o salvador da pátria, acima dos partidos, que dialoga diretamente com o povo francês – uma coisa que me parece muito negativa. 

E o aparecimento de Benoît Hamon?

Hamon é um autêntico social-democrata de esquerda. Tem algumas propostas interessantes que merecem ser discutidas. O problema é que ele tem rabo preso porque é candidato do partido socialista. Tem que fazer média com o resto do partido, que é muito de direita. Ele não rompe com esse setor. Se ganhasse, faria governo com essa gente.

Como vê a proposta de Benoît Hamon de estabelecer um rendimento básico incondicional e as críticas que lhe fazem setores, como a ATTAC, de que isso significaria o fim do Estado social e a sua substituição por um cheque para todos?

Estou bastante de acordo com essa crítica. Eu diria que é uma medida muito ambígua que é compatível com o neoliberalismo, embora seja possível dar-lhe uma interpretação mais à esquerda e ecologista. Eu não compartilho desse entusiasmo, é uma pretensa boa ideia. Pretende responder à questão do desemprego dizendo, como o capitalismo não cria mais empregos, é preciso estabelecer uma renda mínima. Isso é uma espécie de fatalismo, como se isso fosse obrigatório. A posição correta é dizer: queremos reduzir a jornada de trabalho até que todo o mundo possa trabalhar. Se for preciso, temos de reduzir a jornada para cinco ou quatro horas. Se os capitalistas não aguentam isso, temos que ir mais longe que o capitalismo.