Encontro ao pôr-do-sol, rio Tejo ali à distância de uns passos. Um fim de tarde de inverno com sabor a primavera, que surpreende um gaúcho que vinha preparado para o frio europeu e afinal descobre que “está mais frio na minha terra do que aqui”. Isto enquanto Elis Regina se junta em jeito de banda sonora de fundo. “A maior das gaúchas e a menor porque ela tinha 1,53”. Filipe Catto, 29 anos, está em Portugal para apresentar “Tomada”, o segundo álbum, lançado em 2015, mas que apenas agora chega aos palcos portugueses (hoje no Estúdio Time Out em Lisboa, amanhã na Casa da Cultura de Ílhavo e no dia 4 no Theatro Circo em Braga). Uma “Tomada” que é elétrica, mas que é sobretudo a tomada de assalto da própria vida de um homem que não quer ser o novo Ney Matogrosso, como o apelidaram. Quer apenas ser Filipe Catto, porque a sua vida é mais importante que a arte.
Em “Tomada” há um tema escrito pelo angolano residente em Portugal, José Eduardo Agualusa, e nunca escondeu a proximidade que tem com Portugal. Quando nasceu esse amor?
A primeira vez que vim a Lisboa foi em 2011. Desde aí que venho muito e comecei tendo uma relação muto forte também ao nível do trabalho. Por isso sentia muita pena ainda não ter conseguido vir antes com este álbum “Tomada”.
Por que não veio antes?
Por causa da situação financeira do Brasil. Estava difícil para nós, artistas, investir em shows fora. Mas assim que deu foi o primeiro lugar onde vim.
A crise que se tem vivido no Brasil teve consequências na vida dos artistas?
A arte é a primeira área que sofre com qualquer crise financeira. Mas a resposta a tudo o que a gente vem vivendo é muito criativa.
Os momentos de crise revelam-se, por norma, positivos para a criatividade.
A crise está sendo uma lástima, a gente está vivendo um período muito triste, as pessoas estão muito desunidas e isso é horrível. O que nos aconteceu foi um golpe conservador de direita, um golpe louco e bizarro. Apesar disso, a arte está unida. Os artistas estão se manifestando e trazendo para o seu trabalho discussões que ficaram por baixo do tapete.
A palavra é ainda mais importante nestes momentos?
Sim. Mas hoje em dia, ainda mais do que a questão da palavra, há a questão do ser. Ser quem você é, hoje em dia, é tão libertador, poderoso e inspirador quanto as palavras. O artista que se coloca como uma pessoa é muito bom!
Mas difícil?
Sim. Mas a história está aqui para a gente vivê-la. A gente não pode se esconder. E a gente está se manifestando de uma forma mais humana, se misturando com o público.
Isso também tem muito a ver com o advento das redes sociais, que permite essa proximidade.
Sim, claro. Podemos comunicar com as pessoas. Mas não é só isso. Esta geração de artistas vai nas festas que o nosso público está e isso é muito legal. As pessoas têm ainda a ilusão do artista inatingível e se surpreendem quando percebem que isso acabou.
Ter assumido a sua homossexualidade tem a ver essa ideia da importância do artista se mostrar como é?
Eu nunca escondi ser gay. Mas quando lancei o meu primeiro disco nunca ninguém me perguntou nada e eu fui fazendo a minha vida. Mas fui casado durante sete anos e nunca o escondi. Quando me perguntavam, respondia que era gay. Mas quando vi uma onda conservadora muito forte, tal como outros artistas gays percebemos que tínhamos de lutar. Não estava dando de outra forma. Estávamos vendo os nossos direitos indo por água abaixo. Essa questão do empoderamento pessoal é muito importante – e claro que os grupos que sempre sofreram mais preconceitos aparecem e ganham destaque exatamente pela repressão que sempre sofreram. Hoje, no Brasil, tem uma coisa muito interessante: apareceram muitos artistas trans que não são artistas underground, são artistas que movem plateias grandes. Nunca pensei que pudesse ver uma libertação e uma catarse desse tipo.
Isso quer dizer que, apesar da fase negra que o país vive, há também questões que têm recebido uma crescente aceitação?
Não sei se a sociedade aceitou mas teve de olhar e de discutir. Mas também a questão não é a aceitação. A gente não está procurando aceitação, apenas respeito. Como gay não quero privilégios, só não quero ser provocado ou assassinado na rua.
Essa questão que referiu do empoderamento pessoal, no caso dos músicos da nova geração tem também a ver com a necessidade de, de alguma forma, se descolarem de uma geração de ouro da música brasileira?
Essa geração fantástica e incrível de grandes artistas é uma carga pesada. Estão sempre comparando a gente. Quando eu surgi era o novo Ney Matogrosso. Quando a Tulipa surgiu era a nova Gal Costa. Não é novo nada! Não tem novo Ney! Nem nova Gal! Nem novo Caetano! Esses caras são incríveis e continuam trabalhando. Nós apenas virámos colegas deles. Agora, também por essa questão política, estamos dizendo que estamos aqui, que somos uma geração com algo para dizer. E temos de combater um Brasil onde existe censura.
Que tipo de censura?
Ainda no ano passado aconteceu, em vários festivais bancados por prefeituras, existirem cláusulas em que sugeriam que não se falasse de política nos shows. Este é o tipo de censura que acontece no Brasil agora.
O que fizeram os artistas?
Protestaram juntos. Há uma postura contra o golpe por parte de uma grande parte dos artistas brasileiros. E a gente também sofreu muito porque houve uma lavagem cerebral para a sociedade, dizendo que os artistas eram beneficiados do governo de esquerda, que mamávamos nas tetas do governo e só estávamos protestando porque isso tinha terminado. Mas é mentira. A verdade é que a nossa geração é a que menos é apoiada. Daí a internet ser tão importante para nós.
Costuma dizer que “Tomada” foi o primeiro álbum em que se sentiu integrado. Antes sentia-se um pouco como um extraterrestre?
Sou de Porto Alegre, depois fui para São Paulo. Vim de um lugar onde não tinha conhecidos na música, não conhecia a cena porque em Porto Alegre não tinha sequer uma cena acontecendo.
Ainda menos para alguém com uma voz como a sua?
Exatamente. Sempre fui um ponto fora da curva. Tive entender a minha musicalidade. Quando cheguei em São Paulo a minha cabeça abriu, é uma cidade que amo e me dá muita liberdade. Por isso “Tomada”, o meu segundo disco, foi fruto de tudo o que vivi entretanto. O primeiro disco, a primeira tournée, as loucuras, as frustrações. No primeiro disco fui muito tradicional, mas depois de tudo o que vivi não fazia sentido voltar a isso – apesar de saber que posso sempre voltar porque é como a casa da mãe onde a gente tem sempre um quartinho.
Como foram esses primeiros tempos em São Paulo?
Finalmente me senti dentro do meu espaço. Porque antes me sentia deslocado.
Porquê?
Família católica, italiana, imensa! E eu gay, artista e com esta voz… Hoje olho para trás e percebo que quebrei muitas barreiras. Só o facto de sair de Porto Alegre já foi uma grande transgressão.
Quando começou a perceber que sabia cantar, mas que a sua voz era muito diferente das outras?
O meu pai era músico e eu, desde pequeno, gostava de cantar. Quando fiz 11 anos pedi ao meu pai para me deixar cantar com ele. Na época eu tinha uma voz superaguda, mas toda a criança tinha a mesma voz. Por isso, eu cantava notas altíssimas mas não achava fora do comum. E toda a gente me dizia que a minha voz ia mudar. E mudou. Ficou grave. Aos 14 ou 15 anos. Nessa altura comecei também a tocar instrumentos e a compor. Depois a minha voz voltou a ficar aguda. Mas até aí nunca ninguém me tinha comparado com o Ney. Eu não era um homem cantando com voz de mulher, eu era uma criança. Só quando comecei a fazer shows em teatros e na noite é que me falaram que eu parecia o Ney Matogrosso e que tinha uma voz feminina. Só aí percebi. Tinha uns 16 ou 17 anos.
Mas nunca sentiu preconceito? Nunca rejeitou a sua própria voz?
Sofri muito preconceito mas não tanto pela minha voz, acho que foi mais porque surgi numa geração cool e eu cantava coisas dos anos 50. Achavam que era um contra tenor que cantava música brega, mas o que eu cantava era música popular. De resto, acho que a minha voz é a coisa mais maravilhosa que podia ter. Liguei muito cedo o foda-se e acho que isso fez as pessoas me respeitarem sempre. Porque eu também nunca tive outra chance senão me expor – essa voz que não passa despercebida. Só se eu ficasse trancado em casa chorando e querendo morrer.