Faltam pouco mais de dez dias para se ouvir o tão esperado tiro de partida para um ano eleitoral aterrador no continente europeu. No próximo dia 15 de março, os holandeses serão os primeiros a entrar em campo para decidir quem querem ver sentados no Parlamento e, especialmente, quem esperam que tome as rédeas na formação do Governo. Há mais de cem anos que a Holanda não testemunha um Executivo composto por um só partido e, reforçada pelas últimas sondagens, a tradição vai voltar a repetir-se. Isto significa, numa primeira análise, e tendo em conta a lei constitucional holandesa, que o surgimento do Partido da Liberdade (PVV) de Geert Wilders, numa posição de igualdade pontual com o partido do primeiro-ministro Mark Rutte, no topo das intenções de voto, não garante um lugar no Governo ao assumido paladino anti-islão e anti-imigração, em caso de vitória – os principais partidos em competição afastaram liminarmente essa possibilidade -, e nem sequer lhe oferece a competência ou iniciativa para procurar soluções de coligação. O outro lado da moeda, contudo, pode ser preocupante. A Frente Nacional francesa (FN) e a Alternativa para a Alemanha (AfD), as plataformas políticas de extrema-direita com mais expressão nos dois alicerces que sustentam a União Europeia, face ao (iminente?) abandono do Reino Unido, acreditam que uma votação expressiva no ‘Trump holandês’, reforçará a legitimidade do poderoso movimento antissistema, antiglobalização e anti-UE que tanto propalam, e oferecerá às suas candidaturas aquilo que Trump original trouxe: a possibilidade de «tornar possível o impossível», segundo as palavras emocionadas de Marine Le Pen, após a vitória imprevisível do candidato republicano nas eleições presidenciais dos EUA.
Dizer que as eleições legislativas nos Países Baixos são um pequeno aperitivo no cardápio onde constará o futuro da Europa e da União Europeia não é, portanto, um exagero. Ali, e um pouco por todo o continente, estão a renascer os adormecidos movimentos ultranacionalistas que, ao contrário do que se poderia pensar, não foram dizimados com o fim da Segunda Guerra Mundial, com o desabar do Muro de Berlim ou com a criação da CEE. Alimentada pela mistura explosiva que resultou da crise económico-financeira, da vaga de imigração para o continente, do desemprego, do bloqueio do projeto europeu e da exposição da faceta mais ineficiente dos partidos tradicionais e moderados, a extrema-direita europeia encontrou uma oportunidade de ressurgimento e quer aproveitar a maratona eleitoral de 2017 para voltar à ribalta – já depois de ter sofrido um ténue revés, no final do ano passado, após a derrota do ‘seu’ candidato para o ecologista Alexander Van der Bellen, nas corrida à presidência austríaca.
A união faz a força (e o governo)
As eleições legislativas na Holanda não são apenas peculiares pelo contexto histórico-temporal em que estas, de forma particular, se inserem, mas também pelas especificidades do sistema eleitoral vigente naquela monarquia constitucional, que tornam uma competição pela confiança dos seus cidadãos, num verdadeiro jogo de equipa e estratégia.
Existem 150 lugares no Parlamento holandês, pelo que é necessária uma maioria mínima de 76 deputados para se poder formar governo. Mas contrariamente ao que se passa em grande das arenas políticas europeias, na Holanda verifica-se uma polarização partidária gigantesca, decorrente do enraizamento de uma organização multiculturalista do país e, nesse sentido, da representatividade política e cívica, da qual decorre que uma plataforma, movimento ou partido, assente numa qualquer circunscrição da holandesa, dificilmente encontra par ou semelhante, num outro círculo eleitoral. Em última análise, esta realidade traduz-se num número extenso de candidaturas partidárias, que acabam por impossibilitar que um só partido logre a maioria necessária para poder governar sozinho.
Este ano concorrem 28 (!) partidos à Câmara dos Representantes dos Países Baixos, com sede em Haia, sendo que, de acordo com o Peilingwijzer – um indicador, atualizado de forma regular, que agrega os resultados das principais sondagens realizadas na Holanda -, pelo menos 14 deles têm reais possibilidades de eleger deputados. Além disso, a lei eleitoral garante automaticamente um lugar àqueles que conseguirem uma votação mínima de 0,67%.
Segundo os dados indicados pelo Peilingwijzer, na passada quinta-feira, embora o VVD, de Rutte, esteja ligeiramente à frente do PVV, de Wilders, ambos têm uma percentagem prevista de votos muito próxima dos 16% e apontam à conquista de um número de deputados situado entre os 23 e os 27. Longe dos lugares cimeiros está o PvdA, o partido trabalhista e parceiro de coligação governamental, que conta com pouco mais de 8% das intenções de voto, e uma previsão de 12 ou 14 deputados, números que dificilmente poderão ajudar à sobrevivência do atual Governo. Assim, e segundo os resultados referidos, os cristãos democratas do CDA, os verdes do GL e os liberais progressistas do D66, que apontam aos 16-18 lugares, estão na calha para se tornarem numa solução governativa, e são acompanhados ainda pelos socialistas do SP (12-14 deputados previstos). De acordo com a lei eleitoral holandesa, a formação da coligação governamental é liderada por um deputado, escolhido pelos representantes parlamentares recentemente eleitos, a quem é atribuída a ‘missão’ de procurar aliados para esse fim. Tendo em conta as promessas já lançadas por cima da mesa, essa aliança dificilmente passará pelo PVV.
O anti-islão como promessa eleitoral
Ninguém duvida que Wilders, Le Pen, Viktor Orbán ou até o excêntrico Nigel Farage, fazem parte da mesma família política, nem que seja pela visão eurocética e nacionalista que promovem. Mas ao contrário dos seus camaradas de França, da Hungria, do Reino Unido ou de qualquer outro lugar onde a descrença no establishment esteja a crescer, o programa político do líder do PVV é assustadoramente monotemático, tendo praticamente como único objetivo acabar com a presença da religião islâmica em território holandês. O Governo também não lhe ofereceu grandes alternativas de protesto, diga-se. A Holanda tem apresentado um interessante crescimento económico anual, em comparação com os vizinhos europeus, próximo dos 2.5%, e tem exibido, de forma consecutiva, uma das mais baixas taxas de desemprego das últimas décadas.
A imigração, e particularmente aquela que é composta por cidadãos oriundos de países de maioria islâmica – como a Indonésia, Marrocos ou a Turquia – recebe, então, toda a atenção do PVV e constitui-se como o verdadeiro plano de governo do partido. O seu programa eleitoral, divulgado em agosto do ano passado, só tem uma página, e as medidas propostas para a «desislamização da Holanda», ocupam metade da mesma. «Milhões de cidadãos holandeses estão simplesmente fartos da islamização do país. Basta de imigração e asilo em massa, de terror, de violência e insegurança. Em vez de pagarmos (…) às pessoas que não queremos aqui, iremos gastar o dinheiro nos holandeses comuns», pode ler-se na introdução do documento onde o PVV se compromete, entre outras coisas, a «fechar as fronteiras (…) [e] os centros de acolhimento», a «anular todas as concessões de asilo e residência que já foram garantidas», a «encerrar todas as mesquitas e escolas islâmicas» ou a «banir o Corão».
A aversão de Wilders à presença de população que professa a religião muçulmana nos Países Baixos não se fica apenas no papel. Em alguns episódios recentes, ela assumiu mesmo contornos racistas e xenófobos. O líder do PVV foi formalmente acusado pela Justiça holandesa, num episódio que remonta a 2014, de incitar ao ódio contra cidadãos de origem marroquina – tendo-se recusado a comparecer no seu próprio julgamento -, a quem apelidou de «escumalha» logo no primeiro dia de campanha, há cerca de duas semanas. Mais recentemente, pediu a um deputado de origem turca, para sair da Holanda. «Sr. Kunzu, esta é a nossa terra, não a sua. A Turquia é a sua terra. Parta e nunca mais volte», escreveu no Twitter.
A cruzada de Geert Wilders contra o islão deu ao PVV a visibilidade que necessitava para andar nas bocas da opinião pública e acabou por contribuir para que os maiores partidos holandeses, incluindo o do primeiro-ministro Rutte, tenham dado uma guinada para a direita e colocado a questão da imigração e integração no centro do debate público. Uma realidade que, de um ponto de vista programático, significa uma vitória para Wilders, mas na ótica da procura da confiança dos eleitores e do chamamento dos restantes partidos, acaba por ser problemática, uma vez que o Partido da Liberdade tem pouco mais a oferecer, em termos de programa de governação, que a crítica à imigração de origem islâmica.
Este posicionamento quase exclusivo anti-islão, da extrema-direita holandesa, ameaça arredá-la do centro do poder, independentemente da sua expressão eleitoral, restando-lhe somente o papel de oposição no Parlamento. Wilders está seguramente preocupado e até prometeu uma «revolução» em caso de exclusão da solução de Governo. Mas para os movimentos irmãos franceses e alemães apenas interessa que o PVV consiga uma votação expressiva. Isso chega-lhes para encararem com confiança redobrada os seus próprios combates eleitorais, marcados para o final de abril e inícios de maio, em França, e para setembro, na Alemanha.
Outrora palco da «mais enfadonha eleição na Europa Ocidental», nas palavras do académico Cas Mudde, redigidas num artigo de opinião no Guardian, a Holanda recebe, por estes dias, os olhares e a atenção de todo o continente. Será ali que a Europa terá a sua primeira provação do ano.