A narrativa do ano político europeu de 2017 começa hoje a ser escrita com a realização da primeira das três grandes eleições que poderão muito bem vir a espoletar um verdadeiro processo de rutura com o caminho até aqui percorrido, durante as últimas décadas, pelas principais democracias do Velho Continente. Hoje é a Holanda, no final de abril (primeira volta) e inícios de maio (segunda volta) será a França, e em setembro jogará a Alemanha. Mais do que darem a escolher entre este ou aquele deputado, ou de abrirem portas à formação deste ou daquele governo de coligação, as eleições legislativas holandesas serão palco da grande batalha entre o establishment europeu dos partidos moderados, encarnado na figura do atual primeiro-ministro, Mark Rutte, líder do Partido Popular para a Liberdade e a Democracia (VVD), e o populismo eurocético afeto à extrema-direita e ao nacionalismo, personificado por Geert Wilders, responsável máximo (e membro único!) do Partido da Liberdade (PVV).
A monarquia holandesa assenta sobre um sistema parlamentar multipartidário cuja tradição exclui, à partida, a formação de um governo de partido único – há mais de um século que tal não acontece em Haia –, pelo que, em caso de vitória de Wilders, as probabilidades de poderem vir a verificar-se alterações significativas no quadro político interno ou externo são, pois, consideravelmente baixas – ao contrário, por exemplo, do caso francês, onde uma vitória eleitoral de Marine Le Pen abre portas para o desmoronamento do projeto comunitário europeu. Quanto à Holanda, essas probabilidades diminutas explicam-se, em primeiro lugar, porque ao partido mais votado não cabe a exclusividade da competência ou iniciativa para procurar soluções de coligação governamental e, em segundo lugar, porque os principais partidos já excluíram a hipótese de convidar o líder do PVV para o executivo.
Afastada, para já, uma revolução interna na Holanda, os resultados de hoje poderão, isso sim, marcar a agenda para o tempo que nos separa do ato eleitoral francês. Numa entrevista recente dada ao jornal i, o politólogo holandês Cas Mudde, da universidade norte-americana do estado da Geórgia, explicava que um triunfo de Wilders irá atrair “toda a atenção da comunicação social francesa e internacional” para a seguinte questão: “Conseguirá o statu quo europeu sobreviver ao desafio imposto pelo populismo de extrema-direita?” Quanto ao seu inverso, ou seja, a derrota do assumido comandante da cruzada contra o islão, o académico prevê um cenário distinto. “Será que o radicalismo populista de direita foi derrotado? Terá sido 2016 o ano da extrema-direita?” são as questões às quais os media e os candidatos em França tratarão de responder. A forma como um ou o outro resultado poderá vir a alterar o ângulo do debate das próximas semanas dá, pois, força à transformação da “mais enfadonha eleição na Europa ocidental”, como descreveu Mudde, num verdadeiro espetáculo de circo onde estarão focados os olhares de toda a Europa.
Jogo de equipa
Rutte catalogou o ato eleitoral de hoje como uma “escolha entre o otimismo e o pessimismo” ou, visto de outra forma, entre a Holanda que ele conhece, multicultural, europeia e fortalecida pelos bons desempenhos económicos recentes, e a Holanda “islamizada”, insegura e que gasta todo o seu dinheiro com os imigrantes, descrita por Wilders num programa eleitoral que cabe apenas numa folha. Se este confronto até pode dar corpo a um debate mais alargado na Europa sobre a globalização, a imigração, os efeitos da crise económica ou a ineficiência dos partidos tradicionais europeus, dificilmente encontra espelho na política interna holandesa. Afinal, as duas visões acima descritas representam pouco mais do que 30% das intenções de voto dos holandeses, de acordo com o Peilingwijzer, um indicador, atualizado de forma regular, que agrega os resultados das principais sondagens realizadas na Holanda.
Contrariamente ao que se verifica em grande parte do continente europeu, nos Países Baixos existe uma enorme fragmentação política, decorrente do enraizamento muito próprio do multiculturalismo e da diversidade social do país na própria representatividade política e cívica. Desta realidade decorre que uma plataforma, movimento ou partido assente numa qualquer circunscrição holandesa dificilmente encontra par ou semelhante num outro círculo eleitoral, situação que se traduz habitualmente num número significativo de candidaturas partidárias que impossibilita que um só partido logre a maioria necessária para poder governar sozinho – até porque um partido que consiga uma votação mínima de 0,67% elege automaticamente um deputado.
Este ano concorrem 28 partidos aos 150 lugares da câmara baixa do parlamento holandês, apontando a maioria das previsões para que 15 deles possam vir a eleger deputados. Segundo a lei eleitoral do país, é necessária uma maioria mínima de 76 representantes para se poder formar governo, uma missão que é liderada, não pelo cabeça-de-lista do partido mais votado, mas por um representante escolhido pela nova assembleia que terá como missão formar uma coligação.
Os dados agregados ontem pelo Peilingwijzer colocavam o VVD na frente da corrida, com uma percentagem prevista de votos próxima dos 17%, que podem equivaler à conquista de um número de deputados situado entre os 24 e os 28. O PVV esteve durante várias semanas numa situação de empate técnico com o partido de centro-direita, mas o seu programa eleitoral monotemático – anti-islão – perdeu fôlego nos últimos dias de campanha e fica-se agora perto dos 14% das intenções de voto. Longe dos lugares cimeiros está o PvdA, o partido trabalhista e parceiro de coligação governamental, que conta com pouco mais de 7% de intenções de voto e uma previsão de 10 a 12 deputados, números que dificilmente poderão ajudar à sobrevivência do atual executivo. Assim, e segundo os resultados referidos, os cristãos democratas do CDA, os verdes do GroenLinkse, os liberais progressistas do D66 e os socialistas do SP, separados por escassos pontos percentuais, estão na calha para se tornarem uma solução governativa, uma vez que Wilders foi repetidamente afastado, por cada um eles, durante as semanas que passaram.
O obrigatório jogo de equipa para a formação do próximo governo da Holanda ultrapassa, pois, a rivalidade Rutte-Wilders, transmitida na segunda-feira, no único debate televisivo da campanha eleitoral. Mas o primeiro-ministro está consciente de que as eleições de hoje são um aperitivo para o que aí vem na Europa – rotulou a corrida holandesa como “os quartos-de-final da luta europeia contra o populismo” – e, por isso, não deixou de apregoar, aos holandeses e aos irmãos de armas em França, na Alemanha e onde o quiserem ouvir: “Não sucumbam ao efeito de dominó do Brexit e da eleição de Trump.”