Ainda faltavam 45 minutos para a ex-presidente do Brasil subir ao palanque montado no Teatro da Trindade mas, lá fora, no passeio estreito onde desembocam as duas ruas que partilham o nome com a velhinha sala lisboeta, edificada no século XIX, acotovelava-se, ontem ao final da tarde, um mar de gente sorridente. “Vim dar força à Dilma”, conta ao i um jovem de nacionalidade brasileira, empunhando um cartaz onde se podia ler “FORA TEMER!”, em letras escuras e garrafais. Foi fácil arranjar bilhete? “Não consegui bilhete”, confessa, sem mostrar, no entanto, qualquer tipo de embaraço ou desânimo. “Mas estou aqui para lembrar que os brasileiros de Portugal não esquecem o golpe”, explica, mais sério. Com ele, e como ele, estavam várias dezenas de pessoas. Traziam cartazes, ostentavam orgulhosamente ao peito cravos amarelos e vermelhos e declamavam energeticamente um cântico de apoio: “Dilma guerreira da pátria brasileira!”
O entusiasmo efervescente da rua é transportado para dentro do edifício – pelos sortudos que conseguiram bilhete – mal se abrem as portas do Trindade, e quando Dilma Rousseff aparece enfim no palco, até os mais contidos explodem de satisfação. Quem não soubesse que ali iria ter lugar a primeira conferência – intitulada “Neoliberalismo, Desigualdade, Democracia Sob Ataque” – de um ciclo de seminários, organizado pela Fundação Inatel em conjunto com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com a Fundação José Saramago e com a Casa do Brasil de Lisboa, certamente pensaria ter entrado, por engano, num comício do Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro.
As primeiras intervenções da antiga chefe de Estado do Brasil, deposta definitivamente do cargo no final de agosto do ano passado – após um longo processo de impeachment justificado pela prática de um crime de responsabilidade por irregularidades orçamentais -, davam corpo a esse clima de fraternidade partidária por meio de aplausos vibrantes no final de cada frase ou de manifestações de deleite com as referências a “golpe”, “golpistas”, “forças que perderam” ou “interesses ilegítimos”. “Foi golpe ou não?”, perguntava a oradora. “Foi golpe!”, respondia o público. “Houve ou não houve golpe??”, insistia a ex-presidente. “Houve!!”, confirmavam os espetadores.
O caminho até ao “golpe”
Contida a euforia inicial, a sala encheu-se então de um silêncio devoto para se ouvir Dilma, pelo que, de cada vez que tocava o telefone de um qualquer distraído que se esqueceu de lhe tirar o som, a assistência respondia com olhares de desaprovação fulminante. A antiga presidente do Brasil iniciou então uma descrição detalhada dos 13 anos de governação do PT, iniciados em 2003 pela mão de Lula da Silva, e apresentou uma lista exaustiva do que foi conseguido, em matéria de “políticas sociais”, “luta contra a fome e a pobreza” e “investimento em educação e saúde”, durante esse tempo, para justificar a necessidade de planeamento do “golpe” que culminou na votação favorável do seu impeachment no Senado brasileiro.
Dilma estabeleceu como ponto de partida da apresentação da sua tese o processo de transformação de grande parte da América Latina numa região neoliberal, iniciado no final dos anos 90 e inícios do século xx, através da privatização de empresas estatais e consequente redução do papel do Estado. Segundo a ex-presidente, a missão assumida por Lula de desafiar esse caminho investindo nos “três elementos básicos – educação, casas e reforma – da busca pela igualdade” e na “inclusão dos pobres no orçamento” motivou o descontentamento de um grupo de “interesses” e de “oligarquias”, financeiras e do setor da comunicação social, “estabelecidos desde o tempo da ditadura”, que “começaram a procurar, a partir de 2014, uma forma de assaltar a democracia”.
As “três crises financeiras” que o país teve de enfrentar, catalogadas por Dilma como criadoras de “uma pneumonia dentro do Brasil”, ofereceram aos “golpistas” o cenário perfeito para avançar com o “assalto”, consumado no dia 31 de agosto de 2016, conforme explicou a oradora.
Lula em 2018, claro!
“Uma vez dado um golpe, o risco de haver novo golpe é enorme”, acusou Dilma na reta final da sua intervenção, numa altura em que se sentia na sala um clima de excitação refreado que só aguardava por ouvir a solução da ex-presidente, sobejamente conhecida, para combater aqueles a quem ela chama “fungos e parasitas”. Que veio enfim: “Apesar da campanha dos media contra ele, da tentativa de alteração das regras do jogo e de estarem a fazer tudo para o retirar da eleição, Luiz Inácio Lula da Silva ainda é o mais querido do povo brasileiro. É essencial para a democracia do Brasil que ele não seja impedido de concorrer às eleições de 2018.”
Os elogios a Lula da Silva – indiciado por crimes cometidos no âmbito da Operação Lava Jato – atropelaram-se, assim como os diversos planos da “extrema-direita” para “conspurcar” a sua candidatura às presidenciais, a “única que pode travar o regresso da ditadura e da tortura”.
No final, e entre aplausos e festejos, Dilma deixou um agradecimento aos milhões que aderiram à greve, naquele mesmo dia, no Brasil, e aos que ficaram à porta do Trindade, sem bilhete, mas com sorrisos e cartazes. E lançou um apelo à audiência imigrante: “Brasileiros de fora podem dar uma mãozinha. Ajudem-nos e estejam atentos.” O público gostou, lançou cravos dos camarotes e entoou mais cânticos para a “Dilma guerreira”. A campanha presidencial está em marcha.