Segunda-feira. 11 da manhã. O primeiro dia útil da semana ainda arremelga os olhos mas no estúdio da editora Kambas do músico e produtor Fred a azáfama já se nota. Os inquilinos das várias salas de ensaios vão chegando. Nas conversas de corredor, Slow J é o tema. Estamos na véspera da edição de “The Art of Slowing Down” e do concerto de apresentação de hoje no Estúdio TimeOut em Lisboa.
O autor João Batista Coelho escuta todos os comentários como espetador da obra que acaba de conceber e se prepara para pôr na rua. O álbum reflete-o: impera a pluralidade, dominam os cruzamentos e as mestiçagens. A bibliografia publicada sobre Slow J quase sempre o associa ao hip hop mas o que está perante a ser desvendado ultrapassa tipologias sonoras.
“The Lost Art of Slowing Down” já foi carregado para o computador central do Kambas. Slow J olha pelo ombro para verificar se estamos prontos. O entusiasmo latente é o de quem se prepara para desvendar um novo invento. Ou tirar do cofre um segredo à espera do melhor dia para ver a luz.
Quando a introdução se solta das colunas, o volume está altíssimo mas o entusiasmo de Slow J é tanto que não se apercebe. É o criador a espantar-se perante a própria criação com motivos fundados. As breves palavras de José Mujica retiradas do documentário “Human” são o prólogo de uma obra total, sem muros formais. A filosofia do “ser humano completo”, explica.
O discurso de aberta é interrompido pela fúria de “Arte”, single a estrear hoje com vídeo, que o define na extensão total do corpo. Uma linha de guitarra punk é o sangue a correr nas veias de quem diz querer “ser como os grandes cantores” e é afinal um contador de histórias da palavra cantada e falada, na melhor escola de Carlão (a quem deixou uma vénia há dias no Facebook). “Ma nigga, diz-me se é arte ou ar de duro”. A questão delimita o contraste. “The Last Art of Slowing Down” é tudo isto: a ambição dos grandes mobilizadores, o cuidado dos melhores estetas e a vulnerabilidade dos românticos. Ou como definiu Kanye West em “Niggaz In Paris”, ambição americana em sensibilidade europeia. Se era uma necessária uma canção para o caracterizar em pleno ela aí está.
A tampa do frasco de espanto ainda mal foi aberta. “Casa”, um passeio pela memória das “praias do Sado”, dança sobre batida de semba e, de novo, as palavras casam com os sons. “Esse é o meu fado, esse é o meu semba”, testemunha. Hora da radiografia: Slow J é meio angolano e cresceu em Setúbal. Recorda não ter crescido “a ouvir esta música” luso-qualquer coisa mas está-lhe na massa do sangue a mestiçagem. A mistura, tal como Sango cria triângulos entre a batucada brasileira, a ginga angolana e a alta fidelidade americana.
Música de dança para o córtex? Poesia para churrasco? Para Slow J, é uma questão de ser “contraintuitivo”. Rimar contra a maré, chamava-lhe Boss AC mas aqui não se encontram marcas revanchistas. “Quero trazer pessoal para o hip-hop e levar pessoal do hip-hop para cenas tipo Chet Faker”, defende. “Os rótulos deixo para os outros”, acentua sem rancor nem receio.
De facto, “The Lost Art of Slowing Down” é uma festa da diversidade e uma ode à liberdade de expressão. Musical, lírica e emocional. No programa “Na Mira” de Sam The Kid, o pioneiro do rap do Porto, Ace dos Mind Da Gap, chamava a atenção para o contraste no discurso entre a geração marginalizada, a sua, e a nova escola ostentadora e auto-indulgente. Em “Às Vezes”, o minimalismo instrumental convida a despir a alma ao espelho: “às vezes dói mas eu escondo /desde que eu aprendi que os homens fortes não choram nem na beira da ponte”. Não há marcas de contestação. É apenas uma questão de vivência pessoal.
Slow J dá bom nome a si mesmo. Escuta, observa e assimila ao próprio ritmo. O mundo é o recreio e “Comida” – o primeiro sinal de “The Art of Slowing Down” ainda no ano passado a partir de um excerto de “Canção de Embalar” de José Afonso – é alimento para a alma servido enquanto racionaliza as canções que se prepara para pôr no mundo, e pensa nos próximos passos. O álbum há-de terminar com “Mun’Dança”, festim afro-house verbalizado apenas numa expressão repetida. “Depois dessa vida vai vir a outra”. “Fomos nós que o obrigámos a acabar o disco depois dessa”, sorri o produtor Fred. Uma “boa vida” ou uma “vida boa”? A partir de agora “Sonhar para Dentro” deixou de ser opção.