A idade é apenas um número mas não garante um posto. “Spirit”, o 14º episódio da extensa obra dos Depeche Mode, acaba de os devolver à agenda mediática. São raras as bandas da geração de 80 que ainda se podem gabar de gerar entusiasmo a cada novo gesto. Que o digam Madonna e os U2, fuzilados pela opinião pública nos álbuns recentes apesar do esforço reconhecido em se manterem na crista da onda e criar novos estímulos a partir de uma folha em branco. Formal no caso dos U2 quando se uniram à Apple e se instalaram sem pagar renda nas contas de iTunes perante um buzinão global nas redes sociais – ou Madonna na busca incessante pelos produtores da moda, como quem procura vestir a última criação no desfile da nova colecção ou simplesmente olha para a montra, compra um casaco para brilhar numa festa e a primeira coisa que faz quando acorda é ir trocá-lo à loja.
Os Depeche Mode não são tão polarizadores como os U2 mas também enchem estádios e festivais. Não defendem causas de espada em riste como Madonna mas em “Spirit” dão que falar pela agenda política. “Where’s the revolution? People, you’re letting me down”, desabafa Dave Gahan no single de apresentação “Where’s The Revolution”. A parte arrisca-se a ser maior que o todo e o álbum a ser recordado por esta canção.
O vídeo a preto e branco realizado por Anton Corbijn, responsável pela imagem dos Depeche Mode desde a segunda metade dos anos 80 quando se deu o salto do estatuto de culto para a música para as massas, dá forma visual às intenções manifestadas na letra.
“Where’s The Revolution” começa com os Depeche Mode mascarados de Marx e continua com Dave Gahan em pose ministerial entre Hitler e Trump a dar um discurso aos acólitos. O exercício tem tanto de sarcástico como de apartidário e fez revolver a relação entre a obra do grupo e a agenda política. Panfletos dylanescos nunca escreveram mas “Get The Balance Right” (do álbum “Construction Time Again”) e sobretudo “Everything Counts”, crítica ríspida ao cinismo neo-liberal yuppie da era Thatcher e “People Are People”, manifesto declarado contra a falta de igualdade e intolerância, são, além de canções favoritas dos fãs, dois recados sem tempo motivados por contextos de época.
Em 1986, “Black Celebration” era a expressão total não apenas de uma época mas também de um mundo pós-apocalíptico. Um alerta para a destruição de um mundo motivado pela Guerra Fria e pelas divisões do muro de Berlim. À medida que a escala dos Depeche Mode foi crescendo e conquistaram estádios nos EUA e na Europa, as causas universais foram abandonadas para dominarem as autofagias pessoais, os dramas emocionais, as adições, o amor e outros demónios como a religião em “Personal Jesus”.
A ironia de “Where’s The Revolution” não faria prever o comentário jocoso e inesperado de Richard Spencer, voz defensora de Trump e líder da “direita alternativa”, proclamasse os Depeche Mode “a banda oficial” deste movimento. Spencer, esmurrado semanas antes durante uma manifestação contra o novo inquilino da Casa Branca, proferiu esta declaração à saída de uma cimeira política organizada por grupos conservadores, nos EUA. No Twitter, esclareceu que tudo não passara de uma piada, afirmando ser fã da música dos Depeche Mode mas o fogo estava ateado e a banda reagiu com incómodo.
Primeiro, demarcando-se da associação à extrema-direita e depois através de Dave Gahan em entrevista à “Billboard”. “Richard Spencer é um cabrão. Um cabrão educado, que é o mais assustador”, disparou. “Vi o vídeo em que ele levou um soco. Foi merecido”.
“Acho que ele só o disse [ser fã dos Depeche Mode] porque sim. Mas não é um tipo como o Milo [Yiannopoulos, ex-editor do site Breitbart, também de extrema-direita], que está só à procura de atenção e é um louco”, defendeu. O vocalista dos Depeche Mode reconheceu ao neo-nazi o direito de quem “vive num país livre e pode dizer o que quiser”, mas não escondeu o transtorno. “Nunca recebi tantas chamadas ou mensagens das pessoas como com este caso. Amigos e artistas que perguntavam ‘O que raio é isto?!’”.
Os Depeche Mode podem ter perdido algumas horas de sono a tentar decifrar de onde partida o sentido do comentário do Spencer e a interrogar-se o que teriam feito de tanto mal para ter um neo-nazi como fã mas ganharam o subtexto necessário para dar a “Spirit” um acontecimento e não o limitar à condição simples de grupo de novas canções.
Quando a banda reencontrar o Passeio Marítimo de Algés repleto de fãs, admiradores, turistas e ouvintes aleatórios à espera de reproduzir clássicos em pequenos vídeos do Instagram, talvez esta história já esteja esquecida, mas o que importa, para já, é que está de novo entre nós e ainda com uma palavra a dizer.