20 de março de 1968. A Padeira de Aljubarrota atacou ao entardecer…

Maria Antunes Beça, dona de uma pensão na 24 de Julho, agrediu sete dos seus hóspedes com uma pá e lançou sobre a amante do filho uma panela de água a ferver.

Polidactilia. É assim que se chama. Na sua expressão mais simples, limita-se a um dedo extra em cada mão, muitas vezes uma espécie de segundo mindinho. Brites de Almeida tinha seis dedos na mão direita e outros tantos na esquerda, e dava bom uso a todos. O pai era taberneiro e a rapariga sempre foi conhecida por se envolver em desordens. Às vezes fazia-se passar por um homem, aproveitando o seu jeito grandalhão e desengonçado. Nasceu em Faro, dizem. Quando se viu órfã, aos 26 anos, demandou novas terras. Fez-se à vida. Tinha bom manejo de qualquer arma. E também lhe chamavam Brites Pesqueira.

Essa foi a primeira padeira, embora pesqueira. Padeira de Aljubarrota. Parece que encontrou sete soldados espanhóis escondidos no forno, após a batalha. Matou-os a todos. Uma versão feminina do Mata-Sete dos irmãos Grimm. Depois, ainda com a adrenalina a tomar–lhe conta das sinapses, juntou uma tropilha e foi à caça de castelhanos. De pá na mão.

A outra padeira Maria Antunes Beça morava com o marido, Fernando Antunes Beça, na Avenida 24 de Julho, em Lisboa. Ele era pintor da construção civil, e ela responsável pela pensão de águas quentes e frias que geriam em sua casa. Já eram ambos conhecidos da justiça. No dia 20 de março de 1968 estavam no Tribunal da Boa Hora, à frente do juiz Augusto Azevedo Fonseca e do delegado do Ministério Público João de Oliveira. A acusação descrevia: “Dentro da sua residência, agrediram sete dos seus hóspedes, causando a um homem e quatro mulheres doença e impossibilidade para o trabalho, entre 25, dez, oito, seis e um dia”.

O sete sempre foi um número cabalístico.

Do Cais do Sodré a Alcântara, o povoléu murmurava um nome: “Padeira de Aljubarrota.”

Tudo começara com um romance. Talvez nem tanto. Um namorico, uma tentação. Envolvidos: o filho do casal Beça e uma hóspede que dava pelo nome de Alice Simões. Maria e Fernando embirravam sobremaneira com a mulher e não queriam nem vê-la por perto do herdeiro. A confusão foi-se espalhando como fogo em campo de milho seco.

O conflito rebentou.

Certo dia, os vizinhos foram confrontados com uma vozearia fervilhante. Ameaças. Gritos. Insultos.

A exaltação de Maria e de Alice era incontrolável.

A nova Padeira de Aljubarrota resolveu entrincheirar-se na cozinha. Não deixava ninguém aproximar-se.

Alice arregimentava aliados e simpatias para o seu lado da trincheira. A rua dividia-se entre ambas as beligerantes. O caldo entornou-se de forma definitiva. E estava quente.

A agressão Maria Antunes Beça saiu do seu refúgio na cozinha com uma panela de água a ferver nas mãos. No auge da raiva, lançou-a sobre Alice, provocando-lhe queimaduras muito graves. Fernando, o marido, assistiu a tudo impávido.

Uma voz gritou: “Ó da guarda!”

O conflito estendia-se pela casa e envolvia cada vez mais gente. Maria encostou-se à porta do quarto e atirou braçadas e murros sobre quem procurava acercar-se dela. Pegou numa pá com um cabo comprido e agrediu a torto e a direito. Em seguida, lançou mão de novas armas: garrafas. Cheias ou vazias, voaram em todas as direções.

Agora, Fernando também tomava parte na batalha. Era ele quem recolhia objetos e os entregava à mulher. E ainda tinha espírito para dichotes: “Olha aquele ali. Atenção. Inimigo à vista!”

Nem a autêntica Padeira de Aljubarrota parecera tão violenta no tempo em que, pedida em casamento por um moçoilo do Alentejo, lhe prometeu boda se ele fosse capaz de a vencer numa luta corpo a corpo. Desancou o desgraçado até o deixar a pão e laranjas. E fugiu para Espanha de barco. O mesmo barco que, capturado por mouros, foi desviado para o norte de África, onde Brites de Almeida foi vendida como escrava. Mas isso foi muito antes de Aljubarrota e dos dias gloriosos do mata-sete.

A padeira moderna, Maria de nome, foi identificada pela Polícia de Segurança Pública. Resolveu fugir e não se apresentar ao juiz. Condenada à revelia, ficou sujeita a seis meses e meio de prisão correcional. O marido levou três meses e meio. Requereu o advogado de ambos, Guerra Madaleno, a anulação da pena. E, finalmente, Maria e Fernando foram à barra no tal dia 20 de março. O patrono defendeu com unhas e dentre a teoria da legítima defesa. O Ministério Público bateu-se pela manutenção da primeira sentença.

O meritíssimo Augusto de Azevedo Fonseca comutou a pena. O tempo de detenção foi substituído por multa à razão de dez escudos por dia. Somaram-se 800 escudos de imposto de justiça e as indemnizações aos ofendidos. Depois, a nova Padeira de Aljubarrota regressou à Avenida 24 de Julho e à pensão. Nada se soube do futuro do filho com Alice. Ela já não morava ali.